Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista
Entrevista com Jorge Mautner
Idelber Avelar e Christopher Dunn (com participação de Nélson Jacobina)

Transcrição de Larissa Avelar

Chris Dunn - Gostaríamos que você falasse um pouco de sua história pessoal, da sua família, a fim de situar o artista e intelectual dentro de um contexto e trajetória.

Mautner- Nasci em 17 de janeiro de 1941, e toda a minha história é diretamente ligada ao holocausto. Meu pai, judeu vienense, trabalhou na resistência antinazista (tanto que na obra completa há os selos dessa luta) e foi uma das pessoas que foi falar com Getúlio Vargas, que inicialmente apoiava o Estado Novo, para ele mudar de lado, e data dessa época a mudança de Getúlio. Após a guerra, em 45, meu pai foi três vezes ao exterior agradecer em nome da resistência judaica. Através dele recebi toda a cultura judaica, mas transmitida de uma maneira atéia e muito contemporânea, já em termos de quanta do Einstein, porque meu pai sempre foi uma pessoa muito sábia e eu costumo dizer que toda a minha literatura e o que penso é 90 ele. Minha mãe era austríaca, mas nascida na Iugoslávia, portanto, parte dela era eslavo-irlandesa, e era católica. Os meus primeiros sete anos passei no Rio de janeiro e ao mesmo tempo em que meu pai recitava Goethe de cor, recitava as partes Mefistófeles, que eram a sua preferência, minha mãe estava muito traumatizada pela guerra, pelo holocausto do qual escaparam e por motivos pessoais da proibição da vinda da minha irmã, que foi para a Inglaterra. Então, ela ficava comigo, mas não muito tempo. E quem ficava muito tempo comigo era minha babá, que era ialorixá de candomblé. E era gozado porque eu freqüentava a igreja da Glória e o candomblé funcionava ao lado, então eu era embalado aos meus sete anos pela minha babá ialorixá, adormecia ao som dos batuques e acordava na camarinha. Depois minha mãe se separou do meu pai e eu fui para São Paulo. E, embora nunca perdêssemos os contatos com ele, eles ficaram mais raros até tornarem-se novamente permanentes, quando meu pai ficou amigo de meu padrasto, que era alemão naturalizado, e com q uem comecei a aprender violino; ele era o primeiro viola do Teatro Municipal. Além dos conflitos que eu tinha por causa do holocausto, havia a questão dessa separação, mas era uma situação inusitada, pois meu pai era bem recebido dentro de casa, meu padrasto era uma pessoa boníssima e eu fiquei então com essas influências múltiplas na minha cabeça. E a dele foi a da música, por um lado, música erudita, por freqüentarmos círculos do Teatro Municipal e pelo fato de que música de câmara era praticamente tocada nas casas de vários músicos judeus húngaros, judeus alemães, judeus austríacos, muitos dos quais inclusive tinham vindo da repressão stalinista da revolução de Budapeste. Mas, ao tempo em que eu era exposto a essa música erudita e a toda a Literatura (porque meu pai sempre me influenciou recitando Fausto desde que eu era bebezinho e eu lia muito, sempre devorava livros, tinha a verba aberta pra livros, teatro e cinema) meu padrasto o fazia bico na rádio nacional, rádio Excelsior, rádio Tupi, rádio Record e ali desfilavam os cantores da época, como Blackaut, Jorge Veiga, Luís Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Araci de Almeida, Nelson Gonçalves, João Dias, Isaura Garcia, Cauby Peixoto, Ângela Maria, e eu os conheci bem de perto ainda criança nessas excursões, em festivais e em várias ocasiões nas rádios, tanto que anos mais tarde eu fui até calouro também em rádio. E então essa é minha história, que gira em torno do fato de que meu pai me educou, claro, com todas as forças para eu ser- eu digo assim poeticamente- o vingador dos campos de concentração, mas é verdade; então todo o amor ao Brasil que ele tinha, ele transmitiu a mim e eu sabia que, se eu não tivesse nascido no Brasil, eu seria cinza de forno crematório de campo de concentração nazista. Daí todo o meu amor pelo Brasil, alimentado muito por ele e pela minha babá ialorixá e inclusive pelo meu padrasto, mas mais pelo meu pai e pela minha babá ialorixá, que viam no Brasil a terra prometida: a falta de preconceito. Ele viajava como caixeiro viajante e me trazia tacapes de índios com pedras preciosas e semipreciosas. E sempre fui educado como se o nazismo não tivesse acabado, como ele realmente não acabou com o fim da Segunda Guerra Mundial. Essa seria uma luta permanente. E então eu fui mais ou menos como que preparado e induzido a isso. E minhas brincadeiras sempre foram assim, eu tinha muitos soldados de chumbo com as formações de várias épocas, napoleônicas, gregas, romanas, eu imitava a falange macedônica, e nessas brincadeiras de soldadinhos de chumbo eu reconstituía as estratégias dessas antigas batalhas, de Austerlitz, Marengo, Guerra Civil americana, eu sabia as formações. Eu tinha uns 12 anos na época e me lembro de um jovem arquiteto húngaro, de 22 anos, era judeu também, que ficava horrorizado com a minha brincadeira porque ele era pacifista e achava estranho que eu, que era vítima do holocausto, brincasse de guerra ao invés de brincar de caubói, pois havia o cara bom e o cara mau, ao contrário da guerra. E eu discuti muito com ele, disse que sim, senhor, havia o lado certo da guerra e o lado errado da guerra. Aos 12 anos eu fiz meu primeiro partido político, organizei minha turma na rua, e todas minhas brincadeiras sempre foram culturais, eu não tive infância neste sentido, a cultura sempre foi o meu brinquedo e a minha profissão. E muito cedo eu escrevi, muito cedo eu expus essa minha tormenta em termos positivos, e quando eu descobri grandiosamente com Dostoievski, com Nietzsche, embora antes com meu pai, mas ali eu descobria por escrito, que a angústia é o estado autêntico do ser, eu fiquei em plenitude, porque era aquilo que eu sentia. Então minha angústia se expressava e eu, como Dostoievski, escrevia e faço minha música, que é minha literatura cantada e musicada, para me libertar dos demônios e para alcançar a salvação e o perdão. Em relação a isso eu sempre tive muitas personalidades, d esde cedo fui educado na literatura alemã, que redundava no Romantismo, e também no candomblé com as quatro cabeças, e, então, a coisa de ter várias personalidades ou vários cérebros que fingem ser um só ou os vários ângulos de todas as coisas sempre foi a minha maior preocupação. Tanto que a minha literatura vai de um radicalismo de esquerda a um radicalismo de direita a um radicalismo de centro e tenta sempre conciliar esses opostos. Muito cedo, aos 16 anos, eu fui descoberto por Vicente Ferreira da Silva, Paulo Bonfim como poeta, já havia escrito quase todo o Deus da chuva e da morte, e aí eu fui descoberto pelo Vicente Ferreira da Silva e pela Dora Ferreira da Silva. E então eu passava o tempo todo só fazendo isso, muito incentivado, era uma continuidade, já que desde criança era estimulado a ser escritor, como uma espécie de krishina Murti, doutrinado para isso. Sempre com a maior liberdade, não tinha restrições em nada, mas sempre com esse terror do holocausto permanente, sabendo que não havia terminado, o que depois vi em Otto Maria Carpeaux, Sartre, Camus, que disseram a mesma coisa; mas eu já tinha essa consciência. E era em torno disso o diálogo com Vicente Ferreira da Silva, cuja casa eu freqüentei durante quase oito ou dez anos. Finalmente saiu meu livro Deus da chuva e da morte. Na época eu havia organizado um novo partido, Kaos, do qual perdi o controle, era um partido anarquista, e nessa época eu comecei a conviver também com uma pessoa muito importante, o Professor Mário Schemberg, que trabalhou com Einstein, o qual disse que a única pessoa que poderia continuar o trabalho dele, Einstein, era Mário Schemberg. Mas ela era... um idealista muito louco e preferiu voltar para o Brasil, ser cientista aqui e principalmente ser candidato do Partido Comunista ao qual pertencia no Comitê Central. Eu logo quando entrei em 1962, entrei para a célula dele, e nós já tínhamos idéias totalmente diferentes, nós éramos contra o realismo socialista, a favor até da mitologia, o Mário Schemberg já falava em taoísmo, budismo zen, Heidegger; tinha uma visão muito ampla. O gozado é que tanto a direita quanto a esquerda não gostava mais... achavam que a minha literatura, e o meu pensamento valiam muito porque as novas posições... um Nietzsche é digerido, Dostoievski, Heidegger é digerido, ela não fazia uma literatura naturalista ou psicológica, nem socialista-realista, ela era uma mitologia, mas mitologia no sentido de visões de arquétipos, pois a minha literatura são arquétipos, visões mitológicas, mas registrando sempre a atualidade existencial como primeiro valor. Então nisso se enquadrava a fenomenologia de Edmund Husserl e Max Scheler, que, ao mesmo tempo em que é super universal, é individual e intransferível. A minha própria vida tem a maior importância no sentido de que ela é um testemunho sagrado, aí, é novamente o judaísmo: a história humana é sa grada. Minha literatura e música sempre foram assim, veio o regime militar, eu fui incurso na Lei de Segurança Nacional, em 1965, fui para os Estados Unidos, onde passei um longo período, trabalhei na Unesco, lavador de pratos, ajudante de garçom e em 1968 em um simpósio, congresso interlatinoamericano de intelectuais de todos os países, exceto Cuba, em Caracas, Venezuela, conheci várias pessoas, mas a principal foi o poeta Robert Lowell, do qual me tornei secretário literário. O gozado é que as conversas que eu tinha com meu pai, com Vicente Ferreira da Silva, com Mário Schemberg eram as mesmas com Robert Lowell e continuam sendo as mesmas atualmente: entre a liberdade e o terror, entre o magnífico futurismo e a natureza, as paixões humanas; e, quanto mais eu escrevo, mais eu canto, mais eu não sei nada, mas cada vez mais forte, e já era muito forte sempre, a relação de que acima de qualquer explicação está a emoção e, com a emoção, está o perdão. E isso se torna claro logo nos m eus primeiros escritos em que há assim um acerto de contas com a cultura européia, porque meu pai me mostrava tudo, mas dizia „olha lá, fizeram campos de concentração, apesar de toda essa magnífica coisa aí‰, então eu tinha uma vontade de esbofetear toda a cultura européia, a pretensão esnobe de todas elas e sobre isso eu me inspirava muito, claro, nos textos revolucionários russos, revolucionários alemães, na literatura chinesa e, também, na grande literatura norte-americana que, ao contrário da européia, não era esnobe, com raras exceções, Jack London. (Nos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que eu era secretário do grande Robert Lowell, que é a continuação de Ezra Pound e Elliot, eu fiquei muito amigo também do Paul Goldman, que era essa visão também vital.) E Hemingway, o escritor que precisava lavar pratos, cortar árvores. Mas principalmente a admiração da literatura e da cultura brasileiras. Desde o terreiro da minha babá ialorixá , com aqueles cantos mais sofisticados que muitas poesias de Mallarmé, até a literatura brasileira genial de- incluindo o nosso quinto império- Camões, Fernando Pessoa, Padre Antônio Vieira, e principalmente Castro Alves, Augusto dos Anjos, Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Guimarães Rosa. E depois, como eu disse, os que conheci pessoalmente: Jackson do Pandeiro, Luís Gonzaga. Além do épico, todo o nosso folclore, Raul Bopp. Em 1962, o Estado de São Paulo pediu uma lista de livros principais e eu selecionei 480 e aí disseram: você mentiu, disse que tinha lido isso tudo e eu disse não menti, não... E finalmente os pontos culminantes: nos Estados Unidos, eu compus com Carla Blai, e já conhecia de nome Caetano e Gil, mas não os conhecia pessoalmente, os quais, através de Agripino de Paula, grande amigo meu, também me conheciam de nome. Eu havia lançado, antes de ir para o exílio, o grupo Os Mutantes, que se chamava O Seis. Tanto Arnaldo Batista, Sérgio Dias quanto o Agripino falavam sobre mim para o Caetano. E Nessi Rocha, minha grande amiga falecida, irmã de Glauber Rocha, havia levado o Deus da chuva e da morte para o Glauber, então este, antes dos tropicalistas, já havia conhecido a minha obra. Ele tinha a seguinte frase: “Ih, lá vem o chato do Jorge Mautner”, mas ele dizia outra assim: “Se eu fosse me definir, eu diria que eu sou do Kaos com K do Jorge Mautner, isto é, se ele o permitir”. Quando encontrei Caetano e Gil, em Londres, imediatamente nos identificamos e nos tornamos muito amigos. Compartilhávamos idéias nos âmbitos ideológico, estético, político e filosófico, inclusive de voltar ao Brasil durante a ditadura mesmo e provocar, precipitar, promover e possibilitar a chegada da democratização, criando já um clima, uma atmosfera literária, musical, poética em direção a uma abertura, a isso que se deu. A partir daí, começa em 1972 minha vida mais participante como , sei lá, pop star ou músico... sempre publicando livros, e culminando, em 2002, na publicação das Obras Completas e no lançamento deste disco com Caetano Veloso que, aliás, um crítico do New York Times considerou o segundo melhor disco do ano. Em meio a isso tudo, ativismos políticos incessantes.

Idelber Avelar - Sobre a questão especificamente musical, acredito que você é a primeira figura da música brasileira que transforma o violino em um instrumento de música popular que, embora seja um instrumento com usos populares em seu contexto de origem europeu, é codificado nas Américas como erudito.

Chris Dunn - De toda aquela música popular do leste europeu, música popular judaica, está se resgatando uma tradição de uma forma que não é comum no Brasil...

Mautner - Acho que vocês têm toda a razão, mas a presença do violino, na verdade, começou com Fafá Lemos, mas ele ainda toca violino classicamente, como o Grapelle, o Pontí. O meu violino, e só estrangeiros repararam nisso, inclusive quando houve minha homenagem no consulado austríaco todos ficaram boquiabertos, porque, além de tocar violino, e não rabeca, eu faço percussão e isso é uma grande novidade. E com a percussão, eu acompanho o meu canto, que obedece ao velho canto da velha guarda, nasalado como o de Araci de Almeida, uma [alemolência?] nasalada como Jorge Veiga, quase tom de taquara como Jackson do Pandeiro. Eu canto nesse estilo, eu não me deixei influenciar pelo cool do grande gênio João Gilberto, por toda essa coisa de secar a voz; eu sou um anacronismo. Então como a vo z do violino acompanha a minha voz, ela tem também essa característica do meu canto, além de eu, novamente, querer realçar a originalidade do batuque de percussão que eu faço, os rosnados e ruídos e tudo...

Nélson Jacobina - Na afinação do violino clássico não é usado o vibrato, que dá um tom mais seco, estilo mais percussivo, rítmico.

Idelber - Uma vez Caetano disse sobre Paulinho da Viola que ele tocava violão como se a bossa nova não houvesse existido, e ele continua tocando assim. E com você nós temos essa sensação, de que toda sua geração de 59 ouviu Chega de Saudade e, a partir daí, armou a música. A sua música não...

Jacobina - O Gil dizia uma coisa engraçada sobre isso- o século XIX e o século...

Mautner - É, e o século XXI, a música muito pré- histórica e a futurista.

Jacobina - Os anos 50 e os anos 70, como se os 60, não só a bossa nova, como o rock tipo inglês dos Beatles tinham menos influência que o rock de Litle Richard, Elvis...

Idelber - E isso contribui muito para uma qualidade que sua música tem que é esse caráter infantil. Há alguma coisa que está nas letras, mas há algo que está na música mesmo, na melodia, que é infantil no melhor sentido da palavra, ou seja, que mantém vivo um certo deslumbramento com o mundo.

Mautner - Eu acho que você pegou bem. Eu jovem já me considerava um velho profeta, sempre me considerei velho; as garotas diziam: puxa, mas que velho mais enxuto de 25 anos; e eu acho que esse humor é o humor da abertura do ser para todas as direções; é uma coisa do poeta, ele se deslumbra como se pela primeira vez, ele pode estar com 80, 90 anos e ao ver uma folha ele se deslumbra. Muitas vezes pode-se achar a pessoa meio idiotizada: “Olha ali, um besouro”. Essa capacidade, acho que nasce também de um grande terror... é a presença da graça divina e também tem a ver com a visão arquetipal e ideogrâmica do que se chama infantil. Veja, mesmo A Bandeira do meu partido é um canto infantil e eu pensei assim: vou fazer uma música que é um hino, mas não pode ser um hino marcial, porque qualquer hino marcial faz lembrar o terror do III e do IV Reich, então eu me lembrei de Israel, em que as canções militares são cantigas de roda infantis e fiz A Bandeira.

Jacobina - Se bem que todos os hinos são meio infantis, mesmo os marciais. Com a exceção de alguns, como o Hino Nacional Brasileiro. Mesmo o americano...

Mautner - Mas de todos eles o meu é o mais infantil. “A bandeira vermelha leva a esperança, és uma criança”. Algumas são mesmo para as crianças, infantis, como Muzi, Muzi, Locomotiva, Samba dos animais, Pégazus, refletem a minha grande proximidade com as crianças, que é muito grande. Fiz muitas músicas para os animais, Rouxinol, eu falo com meus gatos, com os cachorros, eu os adoro. Eu vivia assustado com aquela frase do Sartre que diz que quando se ama muito as crianças e os animais, nós os amamos contra os homens. Mas não importa, eu sempre os amei talvez mais ainda. Há um terceiro elemento importante que é uma visão de deslumbramento pelo Brasil, que eu amo como a própria vida, o que é evidente porque senão eu seria cinza de forno crematório nazista. Então o meu ufanismo ao narrar a paisagem brasileira é igual a Patropi de Jorge Benjor, às músicas ufanistas de Ari Barroso, de Assis Valente. Esse esplendor do Brasil já basta para estar vivo. E um quarto ponto são as músicas para Deus, Jesus de Nazaré, São Jorge, umbanda, candomblé, a religiosidade mesmo, músicas para Deus, como A Graça Divina, com Caetano, Jesus de Nazaré, que recebeu até o elogio do Cardeal Arns, estava de acordo com as últimas das teologias mais contemporâneas, o encontro do catolicismo com o protestantismo, até mesmo com o muçulmanismo. E ainda há as músicas de dor, de rejeição humana, da condição humana humilhada, ofendida, angustiada, desesperada, como o Romantismo proclama que o amor só tem graça se não der certo, a situação de rejeição. E, junto com isso, as músicas de estranheza, porque eu sou um ser muito estranho, que ao mesmo tempo em que se comunica muito com as pessoas, eu tenho sempre essa estranheza terrível como se estivesse na mais irredutível solidão, incomunicável. E dentro dessa angústia também se nota, porém, uma estrada que conduz de novo a todas essas aberturas de música infantil, de música para os animais, de exaltação do Brasil como paisagem de vida efervescente, o país homérico em construção. E, músicas para Deus, porque são músicas de angústia, e existe sempre uma busca também de salvação, de perdão, de redenção, embora talvez seja impossível.

Jacobina - E também as músicas expressionistas...

Mautner - Ah, sim; que são as da estranheza, estas são um além-bossa nova, elas vêm da herança dodecafônica, erudita.

Jacobina - Bossa nova é mais impressionista, essas são mais expressionistas.

Mautner - É, Olhar Bestial, Menino Carnavalesco. (Mautner cantarola e há ao fundo uma alusão sobre a dissonância talvez em relação à bossa nova). São dissonantes, muito por influência de Brecht e, principalmente, de todos os impressionistas.

Chris - Fale um pouco de sua música mais conhecida, que é Maracatu Atômico.

Mautner - A definição; eu acho que é uma música de vertigem profunda, o eterno retorno nietzschiano, um redemoinho e é a natureza e o futurismo juntos, a esperança, a exaltação da negritude, e principalmente o mistério taoísta, em que uma coisa está dentro da outra, o lago dentro da montanha, a montanha dentro do céu, o céu dentro do planeta. Não é, uma coisa dentro da outra? E a música magnífica do Nelson, que só por ela...

Jacobina - Há algo de concretismo, sem ser concreto.

Mautner - é o essencialismo do concretismo.

Jacobina - Ela brinca com essas coisas, tem várias misturas, ela é muito sintética, meio minimalista.

Idelber - O que me chama a atenção é a forma como você trabalha suas influências, porque figuras como Heidegger e Dostoiévski, que partem da visão básica de que a angústia é o estado mais autêntico do ser, estão muito presentes na sua obra, mas ela transmite a sensação de que é a alegria o estado básico e autêntico do ser.

Mautner - Ah, claro! Foi salva pelo Brasil!

Idelber - Então, apesar de estar muito nítida essa marca de Heidegger e Dostoievski, o angustiado e o negativo, que estão presentes nas obras deles, se transmutam, na sua música, em uma coisa dionisíaca, orgíaca e festiva. Foi o Brasil que entrou?

Mautner - Totalmente...

Jacobina - Até o Maracatu Atômico é um hino disso, alegria, exuberância.

Mautner - Eu diria até a gargalhada de Jackson do Pandeiro: “Quem disse que a escola não vai sair, eu vou gargalhar”. Além disso, além de todo o amor e carinho da minha mãe e do meu pai, há a mão negra da doçura, me achando o máximo sempre, me embalando nos tambores, ela me compreendia totalmente. Então do Brasil eu só recebi grande fluido permanente de vida, de alegria, mesmo nas fases menos conhecidas, por minha responsabilidade mesmo de atuação, eu sempre recebi muito em troca de dadivosidade do Brasil o tempo todo. Além de ser uma referência lá atrás sentida, pelos batuques, ela também coincidiu com a literatura, ela é a própria presença do Brasil traduzida. Eu diria que essa angústia se derrete perante o Cristo Redentor, de braços abertos ali na Guanabara. E pela mistura infinita de vários países que há aqui, sem desme recer nenhum outro, pois eu adoro a literatura de quase todos os países, eu me informo, eu me interesso muito, aqui é a seiva, a matriz radical. Daí Caetano dizer que eu sou um hipertropicalista, neste sentido: eu quase não enxergo, eu nem enxergo o que poderia ser de ruim no Brasil, o que poderia ser de crítica, embora eu tenha escrito, eu saiba, e sempre lutei para acabar com isto, que seria a má distribuição de renda, a injustiça na distribuição da riqueza, mas isso se conserta em três segundos. O "problema" principal é essa alma incrível, que, de tão miscigenada, fala todas as línguas do mundo, que tem as presenças dos escravos dos escravos dos escravos, do proletariado do proletariado, que perdoou seus algozes e, dentro da maior miséria, tinha mais fantasia e riqueza que em muitos países ricos, dando a volta por cima, sacudindo a poeira, com porta-estandarte de maracatu, com porta-estandarte de escola de samba. E eu sempre me lembro, há uns vinte anos eu estava com Gilberto Gil, antes mesmo de ele ser vereador, aí chegou um embaixador alemão: „Gil, Gil, me explica o mistério; na Alemanha nos damos dinheiro para a juventude, todos comem bem, tem verba, mas andam tristes e aqui negrinho pequeno da rua sem dente assobiando na bicicleta, qual o segredo, qual o segredo?" É desse segredo que a minha risada se estabelece.

Chris - Continuando nessa linha de pensamento sobre o Brasil, percebe-se que sua visão é extremamente otimista, uma visão da qual compartilho, eu sinto uma aproximação muito grande. Ao mesmo tempo eu vejo, desde que venho ao Brasil, desde meados da década de 80, o crescimento de um discurso e um movimento no sentido de questionar o discurso da mestiçagem, da harmonia, de ressaltar a identidade negra, de denunciar desigualdade racial, formas de exclusão raciais que às vezes sinto entre alguns interlocutores, por exemplo, Caetano Veloso e outros tropicalistas que reconhecem, mas também há uma tentativa de minimizar... e ressaltar a mestiçagem.

Jacobina - O próprio tropicalismo é um pouco isso, ele também ressalva essas contradições, e também questionava aquela coisa da harmonia, do nacionalismo anterior, certinho, colocava o dionisíaco e tudo isso é verdade, esses grupos de rap, aquilo é uma realidade também. Mas aqui não é como nos Estados Unidos, em que muito daquilo vem da matriz da luta dos negros lá, aqui se importa muito da coisa de lá, que é verdadeira também, mas não é totalmente. A integração aqui é mais real, os E.U.A. tem essa questão democrática, mas não é: criam-se guetos, aceita as diferenças, mas separadamente. O Brasil tem uma idéia, mesmo que às vezes pareça ilusória, mas que é real, de que há uma integração. O samba quando nasce, já nasce em um projeto nacional, era música nacional; e na própria aliança, no namoro do Getúlio com Hitler, pouco an tes de 1940, foi transmitido um programa do Rio de Janeiro, diretamente para a rádio de Berlim e de onde que o governo escolheu para transmitir esse programa? Da Mangueira, a maior batucada...

Chris - Mas era um momento de um projeto nacional que, de uma certa forma está, não totalmente em crise, mas está sendo questionado.

Mautner - No meu caso específico, eu fui um dos primeiros, ou o primeiro, a mais radicalmente chamar a atenção sobre isso, especificamente em um livro chamado Panfletos da Nova Era, publicado em 78, no qual, durante páginas e páginas, eu pergunto: Onde estão os generais negros? onde estão os deputados negros? onde estão os vereadores negros? onde estão os senadores negros? onde está o presidente negro? e eu não paro de falar isso de um modo totalmente radical, sem esquecer essa outra parte. Acontece que aqui se deu, repito, de uma forma democrática, nada mais característico disso do que a eleição do presidente Lula, que é de Garanhuns, mestiço, não tem um dedo, é um operário e a identificação do povo brasileiro para com ele significa isso. E não só ele, o ministro da Cultura é Gilberto Gil, que é um negro universal e mais do que brasileiro. Eu sou um dos mais conscientes, porque, como eu sou também muito radical... Mas mesmo ali, na condição, pode-se dizer, racista, anterior a tudo isso, havia esse perdão, havia esse congraçamento e o tempo todo nossa história se confunde num mutirão de ajuda mútua, nos quilombos que pegavam também aventureiros brancos, numa mistura mesmo que forçada do senhor de engenho para engravidar as negras escravas, as identificações dos mulatos, isso aqui perpassa. Ao contrário, o Brasil sempre teve o problema de se fingir de branco, inclusive muitos intelectuais antigamente, por necessidade, mesmo sendo negros, mulatos, mestiços, se diziam brancos. Isso tudo acabou. Eu gostaria até de citar o que eu falei no congresso da UNE, antes de cantar com Gil, em Recife, e é sobre a importância da música. Há uns 25 anos, Gil fez um show em Manaus, no qual ele apresentou um dos músicos como sendo descendente de indígenas. Houve um frio na platéia e depois, quando os fãs f oram falar com ele, disseram: Gil, gostamos muito de você, mas estamos muito tristes, porque você falou uma coisa terrível sobre o seu músico. E Gil: Mas, o que eu falei? A pior coisa que pode existir para alguém no Amazonas é ser descendente ou parente de índios. Isso faz 25 anos. Passaram-se todos esses tempos, há cinco anos eu estava em Parintins, com Nelson Jacobina, na festa do Bumba-Meu-Boi, que, transportada do Maranhão, virou um supermega-espetáculo. E lá o loiro mais loiro de olho verde e a loira mais loira de olho azul, juravam, não que eram descendentes de índios, mas que eram índios também. Então veja essa modificação vertiginosa... O orgulho total revirou atomicamente.

Chris - Você citou Panfletos da Nova Era e sua crítica a um certo tipo de...

Mautner - Eu até critico o Sérgio Cabral, que falava que melodia... não sabia fazer música, eu digo que isso é um esnobismo e que, além de ser um esnobismo, é a outra máscara do academicismo, que ocultaria um racismo permanente. Isso ainda existe, mas acho que está no final, como também está o coronelismo, embora o coronelismo nem sempre fosse racista. Os dois estão em extinção. A beleza é negra e até em mundialmente o Brasil projeta isso.

Jacobina - O Brasil não tem esse paradigma do democrático. Isto está tendo agora, a história do Brasil não é democrática, é uma sociedade de classes rijas até. Inclusive criticam Gilberto Freyre, falam da tal democracia racial, ele próprio nunca falou esse termo, em democracia racial. A democracia nunca foi um paradigma como é nos Estados Unidos, onde é prezada; no Brasil, isso é recente, porém, há essa ligação inter-racial, mesmo não sendo democrático, quer dizer, não há representação negra no Congresso, claro, eram escravos, tanto aqui quanto lá, mas a relação cultural e carnal mesmo houve.

Mautner - Em relação a isso, eu gostaria de lembrar que, como eu fui educado falando alemão e, em geral os intelectuais brasileiros eram influenciados pela França, e o stalinismo já podava certos livros, e eu li tudo: Spengler, Nietzsche, Hegel, Heidegger, todos que eram chamados direitistas: Freud, Jung; mas também Gilberto Freyre, que foi um dos meus grandes mestres, nunca tive preconceito contra Gilberto Freyre, nem sequer contra o Câmara Cascudo, que foi nazista, né? O presidente Theodore Roosevelt, quando esteve aqui, no Amazonas, Pantanal, ele adorou o Brasil, mas o principal é que ele teve uma eureka aqui: ao ver a miscigenação brasileira, ele achou que a única saída para os Estados Unidos aprofundarem-se na democracia era o melting pot , ele levou essa palavra para lá, onde naturalmente foi rechaçada, e o jazz que recuperou o sentido positivo desse melting pot; mas, veja só, o grande Theodore Roosevelt havia percebido isso aqui no Brasil, ainda nessa época longínqua do melting pot. Mas, para mim, fruto do holocausto, essas coisas, claro, são nuanças e a cultura negra sempre foi predominante, exuberante em tudo, inclusive com grandes resquícios de cultura indígena. O México e o Brasil, e talvez a Bolívia, são os lugares que mais misturaram os índios. Todos os nordestinos são mistura de indígenas com brancos e com negros e cafuzos e mamelucos. É uma coisa inédita totalmente e, mais ainda, mesmo que a pessoa seja branca geneticamente, ela é totalmente absorvida por essa cultura mestiça que domina. É impossível escapar dela, porque todas as estradas foram feitas pela mão escrava, todas as cidades, as do sul também, todas as casas, tudo. A cultura, a maior parte da comida, das músicas, nem se fala, da poesia, do sentimento e do trato por cima da lei, do jeitinho, que é um jeito malandro de transpor o rigor da lei, um piscar de olhos, enfim, tudo que há em Macunaíma; não que eu esteja exaltando o mau caráter, não, mas estou exaltando a outra possibilidade de. Então, o Brasil, em vez de colocar portões, portas, muros, muralhas, ele estabelece, como Gilberto Freyre disse, elos, pontes, comunicações, saídas no grande imaginário que é, paradoxalmente, nutrido por uma extrema elite que pode tudo, podia até matar; e a outra parte, esmagadora maioria, escrava, quase escrava, mas que nutre, justamente por sua dimensão humana, o tempo todo a cultura brasileira e fabrica esse milagre, de tratar tudo por reformas: foi colônia, a independência foi feita pelo próprio príncipe herdeiro da Coroa do país colonizador. A Abolição não é alcançada através de uma guerra civilˆ não que eu tire os méritos de um Abraham Lincoln- é por decreto, Lei Áurea, gradativamente até à Lei da Abolição. Em seguida vem a República, que, por sua vez, mantém os títulos de nobreza dos antigos marechais e duques, ao mesmo tempo em que dá aos proprietários de terras a patente de Coronel, que está acima da lei. Ele podia mandar assassinar alguém da cidade, mas se alguém entrasse na fazenda dele era o acoitado dele. Tem-se o Estado Novo e em 45 novamente a democracia, quando Lacerda fala que a primeira moção é repúdio à ditadura e ao nefasto ditador que a presidiu; aplausos, e o primeiro a assinar é o próprio nefasto ditador deposto, que vira senador. Em seguida é candidato de Dutra, e depois é eleito presidente. Quando ele se suicida, em vez de haver uma rebelião popular, as forças da direita recuam, vem o entreato, Juscelino e depois Jango, nova crise, institui-se o parlamentarismo. Em 64, a preocupação dos generais de Castelo Branco era obedecida pela linha dura com Médice e já nesta época começa-se a programar a democratização, pelos pedidos na voz de Caetano, Gil e na minha. Mesmo ali há um ineditismo, nunca se havia visto isso: em todas as ditaduras latino-americanas era um general que ficava fixo no poder, mas aqui havia uma rotatividade como se se tratasse de uma eleição presidencial- de quatro em quatro anos mudava-se os generais. Além disso, mantinha-se como que encubados numa estufa os dois partidos, a Arena, que defendia a solução militar e o PMDB, que já era a futura oposição democrática àquele regime que estava sendo instituído. Vem finalmente a distensão lenta, gradativa e segura, culminando na anistia total, ampla e irrestrita, que é o mais importante, porque assim não se pode acusar nem os de cá nem os de lá, nem por crimes de sangue, nem por terrorismo, nem por tortura, nada. Essa capacidade da anistia é mais uma característica muito peculiar do Brasil, e nossa grande lição para o mundo: ser capazes de negociar e, em situações extremas, manter suficiente bom-senso e caminho do meio, isso tudo sempre para dar o jeitinho com a maior paz possível, sem o menor derramamento de sangue possível. Essa capacidade de absorção, de perdão acima de qualquer explicação é o que eu acho a grande missão ecumênica do Brasil. Não é à toa que é o maior país católico do mundo, não é à toa que isto é o quinto império da perfeição e da plenitude democrática até em suas leis mais futuras de relativismos e de conseguir sair de onde parece impossível, onde o inesperado sempre surge com mais graça, com mais riso, com mais beleza, como é essa presidência do Lula da Silva, se você for comparar com o pesadelo de medo que a Regina Duarte havia programado, é justamente, radicalmente o oposto, estarrecendo a todos, até mesmo a seus seguidores.

Chris - Você falou em pontes como uma metáfora central da cultura brasileira, mas agora também estamos assistindo a criação de condomínios fechados, de muros, de uma classe média, para não falar de uma classe alta, totalmente apavorada com violência urbana, que é também resultado de anos de exclusão. Então há também contradições aí...

Mautner - Mas eu diria para você que todo esse medo, essa exclusão, tudo o que você está colocando não está no plano normal, porque o Brasil é um continente, última e única maior floresta do mundo, tem quase 180 milhões de habitantes, décima indústria, décima primeira, como você quiser, uma criatividade genial, imagina quando essa população toda receber educação. E esse problema a que você aludiu tem a ver com a lei, com a ordem e é principalmente devido ao narcotráfico; e ao terrorismo e o crime estarem unidos em torno dos trilhões que o narcotráfico levanta. Então, é uma guerra, digamos, artificial, neste sentido: ela não faz parte do corpo orgânico da nação, nem de sua marcha. Ela é uma proibição e pela demanda enorme das drogas e principalmente da cocaína, ela faz com eles tenham um cash que invada o mundo todo. Eu posso lembrar até uns ex-dirigentes de Israel e da Alemanha que foram acusados de usar lavagem do narcotráfico por causa das eleições. Então isso é um problema que transcende o Brasil e sua solução também: ou ela vem para uma linha de proibição total, mundial, ou ela vem para uma linha de liberação também mundial e total. Mas isso é um problema policial, é um problema de guerra entre os traficantes, tanto que eu quero repetir os dados de uma pesquisa recente, feita pela Folha sobre o medo nas cidades. Todas as cidades brasileiras têm o maior medo desse crime que anda por aí, certo? Quem tem menos medo? São os habitantes das duas maiores cidades: os habitantes de São Paulo e do Rio de Janeiro. Perguntados por quê, disseram: Ah, porque isso é luta entre eles, entre os bandidos, a nós isto não atinge‚. Claro que é uma coisa impressionante. Então, a meu ver, isso é uma questão que pode levar até à necessidade de um estado de emergência, porque o narcotráfico domina todas as outras modalidades de crime, ele instalou-se com enorme corrupção em todos os poderes, não é, banqueiros, industriais, judiciário, policial e, para varrer isso, não só embaixo ( Fernandinho Beira Mar que nem é sargento, é cabo), mas para pegar lá em cima, talvez se faça necessária a decretação do ato de emergência que está na Constituição. Mas isso é uma questão policial, dos eleitores, não invalida nada do que eu disse, é uma questão mundial que adquiriu essas proporções porque se trata de um continente.

Jacobina - E adquiriu proporções também por causa do abandono, da falta de presença do Estado nas áreas mais pobres, nas favelas, que ficam nas mãos dos bandidos. Porém, o Brasil, apesar de toda a exclusão, vem incluindo mais. De 60 anos para cá, vê-se mais inclusão social do que exclusão, mais presença dos pobres, dos negros. Não era assim há 60 anos, nem há 40, nem há 20. A própria educação pública que piorou muito, na verdade, antigamente era para poucos, ela era ótima, mas para a minoria, a grande maioria do Brasil era analfabeta, o interior era abandonado. Pode-se dizer que a imigração do interior para as capitais fez com que as cidades grandes recebessem a miséria que tinha lá, onde não havia saúde pública, nem educação. Havia no Rio, em São Paulo e para poucos. Isso deve ser levado em conta. Hoje em dia, a escola púb lica é realmente para pobre, apesar da qualidade ter caído muito em relação a quando ela era para a classe média; há mais crianças nas escolas do que havia antes.

Mautner - Nas periferias, nos morros e nas favelas, onde há esse abandono ao qual Nelson se referiu, e que estariam e estão sendo mantidos nas mãos dos traficantes, a única esperança que foi para lá e que lá trabalha e que tem a benção de Jesus Cristo é a Igreja Universal de Deus, que tem sido a grande resistência contrária a esse império do mal.

Jacobina - Mas há várias ONGs que estão fazendo um trabalho mais social... Projetos culturais na Mangueira que estão formando escolas...

Mautner - Claro, há várias ONGs, o Afro- reagge, o candial do Carlinhos Brown, mas como estrutura industrial, geral, é a Igreja Universal de Deus, sim. Em extensão, não se pode negar o trabalho abençoado dela. Há as outras evangélicas, a católica, mas aquela é a que mais se apresenta lá.

Idelber - Há uma leitura tradicional dos pré-socráticos, que é uma leitura nostálgica, assim do tipo: eles vislumbraram uma aurora que depois foi encoberta. E em Heidegger está muito presente a nostalgia por uma origem do ser que se deslumbrou e depois se escondeu. Você é um heideggeriano que lê os pré-socráticos de uma forma completamente anti- heideggeriana, porque os pré-socráticos, na sua obra, são matéria presente e viva. Heráclito, Parmênides, Demócrito são metáforas vivas de energias presentes, ao contrário da leitura academicista da filosofia pré-socrática, que idealiza esse momento como uma espécie de origem plena à qual já não temos mais acesso. Isso me chama muito a atenção, e é muito bacana, porque abre completamente essas figuras para apropriações várias.

Mautner - Isso porque eu li os pré-socráticos falando com meu pai e ouvindo os batuques brasileiros. Então eu converso com Anaximandro, com Heráclito, com Parmênides, com Empédocles como se fossem figuras vivas e os vejo, de repente, num cara pitando seu cachimbo lá no Maranhão, no Bumba-meu-boi, eu os vejo no futebol, como olimpíada grega. Veja bem, eu sou uma pessoa que começou a falar alemão antes do português, filho do holocausto, e intoxicado por essa literatura européia, e dizia, meu Deus, o que eles estão falando está aqui, o que eles estão sonhando que foi está aqui. O Verget, por exemplo, sentia a mesma coisa, o Estefani de Soa quando escreve o país futuro e se mata depois. Porque tamanho é o choque do verdadeiro Brasil que poucos estrangeiros percebem, porque o Brasil está começando a ser conhecido pelo seu futebol, e um pouco também por sua música, mas isso não é ainda nem um décimo de um décimo da densidade que é o Brasil. Guimarães Rosa capta isto na conversa com camponeses; com pessoas do campo tem-se sabedorias chinesas, e aqui tudo isso já conviveu. Quando eu digo que o candomblé é a religião viva de Dionísio, pelo qual todos os alemães choravam e achavam que tinha acabado, ela vive aqui, no Carnaval, ela está em qualquer boteco quase, na opinião saltitante e viva de uma pessoa que sofre muito, mas consegue dar risada e ter prazer na vida não tendo nem dentes na boca; é uma imaginação tão forte que eu não encontrei nem em artistas europeus consagrados e escritores colegas... [risos] Não é maldade não, é verdade, é de uma profundidade e criatividade tão grandes que... sei lá, o chofer de táxi começa a cantar um samba de sua autoria, o outro ao contar uma piada já inventa em cima, já bisbilhota, tem quatro intenções na pergunta dele. Uma imensidão que não sofreu nenhum reducionismo e ela tem um mito sobre si mesma que funciona até na grandeza adormecida da pátria, como na letra do hino nacional. Isso tudo é verdade mesmo no lugar mais pobre, mais árido nota-se essa enorme fonte de água... a capacidade do riso. Apesar de a piada ser geralmente contra o outro, a piada pacífica contra o gordo, contra o homossexual, contra o negro, contra o feio etc, ela passa primeiro por uma auto-ironia e confraternização e há muitos motivos históricos, mas está aí Gilberto Freyre muito claramente e todos os nossos autores. E o poeta mais raivoso do Brasil ama, idolatra o Brasil, o mais cáustico, o mais crítico adora o Brasil. É um feitiço vivo o tempo todo mesmo nos lugares onde parece não existir, por exemplo, o Sul tem a sua mitologia, Santa Catarina, Florianópolis, Blumenau. E quem é o poeta de lá? O negro Cruz e Sousa. O espírito brasileiro, essa cordialidade é verdadeira, essa capacidade quântica, relativística de admitir várias personalidades ao mesmo tempo. Mesmo que por ordem do rei de Portugal, o marinheiro aqui ao desembarcar tinha que emprenhar o maior número de nativas que encontrasse. Então era dever do homem brasileiro ser “infiel” a sua esposa porque ele tinha, por ordens de El Rei, que cumprir a colonização e povoar a terra. Então até isso passa a ter um sentido extremamente positivo, o erotismo é quase que Real, ele é de lei, a permissividade é algo decretado por ordem imperial e memorial.

Idelber - Você tem uma visão muito interessante sobre o que representa a eleição de Lula, como expressão de um Brasil muito profundo que de repente emergiu de uma forma que ninguém esperava, com repercussões cotidianas na relação entre as pessoas. É um momento-chave, não é?

Mautner - Totalmente, porque é o sonho desde o Brasil colônia, os primeiros 30 anos foram feitos pelos jesuítas, que inventaram o tupi- guarani, fizeram a nação impossível com uma língua só, acabaram, de uma geração para outra, com o canibalismo que era prática de 90 dos índios e tudo através do teatro e da música. E desde então vem a saudade desse, digamos, socialismo democrático místico da graça divina, que depois Marquês de Pombal atacou nas suas missões jesuíticas. Então remonta daí esse sonho socialista brasileiro, ele remonta diretamente de Jesus de Nazaré, ele invade todas as instâncias. Ele é uma visão comum dos mestiços, um desejo arcaico tanto nas missões, quanto nas primeiras comunidades, nos quilombos e nos mutirões espontâneos do povo brasileiro. Isso invade até os chamados fora-da-lei, no cangaço, que, de alg um modo, tinham profunda religiosidade. E também por parte da elite, dos republicanos e do exército, dos jacobinos com aquela influência muito grande de Augusto Comte. Não deixa de ser uma religião universal, culturalista, atéia, mas também tem esse desejo, embora servissem a desígnios elitistas. Mas agora ele, o desejo, rompeu esse Brasil de baixo que talvez seja o maior país negro do mundo, se contarmos os mestiços também, e rompe com uma esperança incrível e eu poderia lhe dizer de muitas frases que eu ouço acerca do Lula da Silva, repito, ele é de Garanhuns, recebido por São Paulo, líder sindical, vem a ditadura, continua a ditadura e ele é líder, não tem um dedo; portanto é uma pessoa da qual Jesus falava bem-aventurados os que sofrem e os que choram porque deles será o reino dos céus‚ e, principalmente, ele tem uma simultaneidade, ele muda, ele é capaz de assumir coisas que, inclusive, assustam, porque ele é um líder de verdade e porque ele tem o apoio maciço do povo br asileiro. Muitas medidas que seriam parecidas ou semelhantes às do governo anterior, muito bem intencionado, suponhamos, tinham um gênero acadêmico que separava de todo mundo. Ouvi dizer até que o governo anterior considerava que o Brasil profundo era uma invenção de meia dúzia de escritores. Não é; o Brasil profundo realmente... de toda uma nação e de todos os seus poetas. E o Lula representa isso e está sintetizado em uma frase que eu ouvi de operários muito pobres do Leblon, eram 11 ou 12, estavam retirando coisas da rua e conversando e depois falaram bem alto para eu ouvir: “ele pode errar quantas vezes quiser, porque ele é nóis lá.” Esse crédito é muito difícil de obter, porque não é pelo terror, não é impingido, ele vem de dentro para fora. A nação brasileira tem uma fé efervescente, ela mistura uma fé indígena com a fé dos batuques negros, que se juntou com Nossa Senhora Aparecida; é uma coisa de muita emoção, que aqui paira muito além da explicação. Recentemente descobriram, há apenas 7 meses, que a batalha mais importante da guerra do Paraguai foi a batalha de Tuiuti, em que o próprio Solano López chegou com quatro bandas musicais. Os generais, que eram brancos, se dirigiram para suas tropas (nesta ocasião, as tropas não eram negras, eram índios pernambucanos) e disseram que o Paraguai iria ganhar por causa dessas quatro bandas, porque estavam tocando uma música tão esfuziante, tão forte, que deveriam inventar uma coisa rapidamente, uma música mais forte ainda. E os índios pernambucanos começaram a tocar o frevo, e depois de quatro horas de frevo as bandas paraguaias foram minguando e o frevo decidiu a batalha de Tuiuti. Esse é Lula da Silva.

Idelber - Você, guru da contracultura, guru do tropicalismo, no momento em que fez sua opção partidária, surpreendentemente, para mim, você não optou pelo partido que é expressão dessa transformação nova da esquerda brasileira, que é o partido do movimento negro, o partido dos novos movimentos sociais. Você optou por um partido que, visto de uma certa perspectiva, é um partido de esquerda tradicional, mais careta, digamos. Inclusive, Chris, quando ouviu A bandeira do meu partido, ele simplesmente achou que era o PT, e não o PCdoB.

Mautner - Mas aquilo foi feito para o PT também, para toda a esquerda. Eu fiquei desde 62 no Partido Comunista, que hoje é o PPS. Tive uma breve incursão no PDT, era muito amigo do Leonel Brizola, e também no PV, sou muito amigo do Gabeira. Eu conheço toda a esquerda. Eu estava no Partido Verde ainda, mas eu e Nelson fomos convidados por ocasião de uma cerimônia pelas vítimas e torturados do PCdoB, muitos mutilados, torturados, principalmente os que tinham participado de Araguaia. Então eu e Nelson fazíamos o fundo musical, nós ficamos tocando em surdina e depois nós fomos ao palco. Estava presente João Amazonas e começamos a cantar músicas socialistas e eu toquei A Bandeira do Partido, que compus em 58, já estava em circulação, mas alguns não a conheciam. Quando João Amazonas ouvi u essa música, ele se emocionou demais e eu recebi um recado para que a cantasse novamente. Cantamos umas quatro vezes. Aí ele subiu ao palco com a bandeira do partido, eu chorando, ele chorando, me deu a bandeira e eu entrei no PCdoB. Foi muito comovente. A Bandeira do Partido pertence a todos os partidos de esquerda, inclusive recentemente o PSB usou na locução do seu programa, com a presença do camarada Miguel Arraes e de todo o comitê da secretaria do Partido Socialista Brasileiro.

Idelber - Mas você não sente uma contradição entre as posições comportamentais que o PCdoB teve ao longo dos anos 70, 80, como políticas bem explícitas contra homossexualismo, contra a liberação comportamental, tudo isso que se coagulou debaixo do nome desbunde? Eles baixavam uma linha de um certo tipo de comportamento que o militante de esquerda deveria ter, incluindo não se envolver com movimentos negros, de liberação sexual etc. Onde fica isso?

Mautner - Eu vou voltar ao Partido Comunista de 1962. Era a mesma coisa, mas eu entrei nesses partidos todos como um escritor, um poeta, ao qual se dá toda a liberdade, inclusive eu muitas vezes divergi das linhas e diretrizes do partido, nunca sequer houve uma moção de censura ou expulsão. Liberdade total sempre para mim de pensamento, mesmo porque eu não vou causar nenhum barbarismo, nem vou servir à reação; então a amplitude do meu trabalho, não é que eu possa e os outros não possam, não é isso, nem sequer se me pergunta isso, nem sequer é tocado. Inclusive eu acho que propositalmente meu nome ali está para dizer que não é assim; é possível a liberdade total, individual e que o resto são calúnias... Mas eu fui candidato pelo Partido Verde também...E na época do PDT eu e Gil escrevemos um artigo para a Folha sobre o socialismo moreno, dizendo que por incluir os índios e a questão da negritude o nosso partido de preferência era o PDT de Leonel Brizola. Mas hoje em dia acho que a fase é de se costurar tudo, o que quer a grande frente popular e já está se construindo. Eu fico ali mesmo por me darem toda a liberdade, apesar de eu pecar contra certos parâmetros ortodoxos do partido, é como um símbolo.

Chris - Eu quero dar seqüência a essa linha sobre cultura e política, mas visando agora ao cenário internacional. Você tem uma frase famosa, que acho que foi de uma entrevista recente em que você diz: Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista. E Gil levou essa frase a Davos, um palco poderoso, importante. Eu gostaria que você falasse sobre esse momento do Brasil, o que ele é e o que representa nesta conjuntura do mundo atual.

Mautner - Essa frase faz parte do disco Eu não peço desculpa, em que eu falo: Jesus de Nazaré e os tambores de candomblé / Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista. Gil citou em Davos, o que muito me enalteceu, eu falei com ele, agradeci... Eu acho que isso resume tudo. Essa coisa já notada por Theodore Roosevelt do meting pot que aqui se deu como em nenhum outro lugar é o grande legado do Brasil, quando a ciência descobre que quanto maior a mistura genética, quanto mais informação melhor é, ao contrário do pensamento nazista que supõe que quanto menos mistura, melhor, que chega até à abstração da loucura da raça ariana. Aqui se tem a vivência, não só no plano concreto, dessa democracia racial, da miscigenação das etnias, como também pela influência da outra cultura. A pessoa pode ser negra negra, mulata, indígena, nordestina, branca caucasiana, mas ela tem a influência da outra cultura, como Giselle Bündchen, que é loirinha, mas é brasileira na ginga, na sensualidade, no modo de pensar, ela absorveu toda essa negritude. Nesse sentido, o Brasil tem a maior lição ao mundo: ser capazes de negociar...

Chris - Mas você poderia relacionar tudo isso à situação atual do mundo, em que se tem um super poder que faz tudo, menos negociar com os países... Como é o Brasil hoje nessa situação difícil?

Mautner - Neste caso, eu, além de apoiar totalmente e absolutamente o governo Lula da Silva, também endosso o parecer dele sobre a guerra no Iraque e a nossa posição pacifista, que vem de Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco e vai para Jorge Mautner e continua... Eu acho que o Brasil seria um contraponto, mas não necessariamente atritante com os Estados Unidos. Um contraponto positivo de ensino até superior e mais sofisticado de como trabalhar no mundo e com o mundo. Claro, guardadas as respectivas diferenças, porque os Estados Unidos, ao mesmo tempo, paradoxalmente, ou não paradoxalmente, antes do ataque às torres gêmeas havia mais um consenso internacional, em que a soberania internacional estava mais em baixa. Hoje em dia com essa ação dos Estados Unidos no Iraque, a soberania nacional de novo se realçou, ganhou maior imp ortância. O mérito tanto da guerra no Afeganistão quanto no Iraque foi porque houve o ataque às duas torres. Neste sentido, os Estados Unidos, com o governo que eles elegeram e, portanto, foi decisão do povo, através de seu presidente, sentindo-se ameaçados decidiram retaliar. Eu não posso interferir num governo estrangeiro, mesmo porque eu não sou nada nem no governo brasileiro, mas minha opinião é que depende; eu sou contra a guerra, sou pela paz, mas se eles acham... porque tudo isso se trata, na verdade, do fim da terceira guerra mundial, fria, e do início de uma quarta guerra mundial, quente, prolongada, em que a própria guerra da revolução permanente de Trotski foi absorvida, quando ela se refere, segundo o Pentágono, à guerra contra o terrorismo, que não tem fim determinado enquanto o terrorismo, o narcotráfico e o crime... Por exemplo, no convite à exigência americana de que só aquele nosso representante brasileiro pode ajudar a reconstruir o Iraque, tem essa sabedoria de reconhecer que nós temos essa capacidade. O Brasil não tem vocação militar, tem um exército até pequeno em relação às fronteiras que possui, se quisesse poderia aumentar, são questões que o povo vai decidir. Mas falando como pensador e poeta, acho que realmente o confronto é contra o crime, contra o narcotráfico e contra o banditismo internacional, não só no terreno pequeno. Assim como o Brasil, o mundo também precisaria de um ato de emergência, de lei e ordem para pegar os financiadores do terr orismo, do narcotráfico, que são altas elites encasteladas em verdadeiras indústrias que rendem trilhões e trilhões. Eu não sei se vai ser pela liberação ou pela contenção e repreensão parcial e gradativa, lenta e segura das drogas no mundo e no Brasil. Acho que esta é a questão nacional e internacional que vai transcorrer todo esse século. Cabe a vocês, que são muito jovens, vivenciar e resolver esse problema.

Idelber - O problema é que o império que atua em nome da lei e da ordem tem relações orgânicas com esse banditismo internacional. A família Bush e a família Bin Laden fizeram negócios juntas durante 20 anos.

Mautner - Mas tratava-se da terceira guerra mundial, eles apoiavam o arrabismo que por sua vez se opunha ao xiitismo dominante no Irã. A maior parte dos caras do atentado eram sauditas e egípcias...

Idelber - Tudo bem, o que você está dizendo em outras palavras é o seguinte: o fato de que esse império tenha mantido relações com o fundamentalismo, especialmente na década de 80, não invalida o nosso apoio à lei e à ordem internacionais e não invalida o fato de que os Estados Unidos são aqueles que têm o direito e o dever de falar em nome da lei internacional.

Mautner - Não sei, eu não falei isso, eu disse que eu, como pensador, não posso nem dizer o que o Brasil vá fazer ou não, porque eu não sou ministro, não fui eleito pelo povo, eu fico aqui assistindo. Quanto menos sobre os EUA, se eles se acharam feridos com o atentado, eles têm todo o direito da jurisprudência de atacar. Como o Brasil, se aqui metralhassem, derrubassem o Cristo Redentor, ele teria o direito de atacar o país que achasse suspeito. Se um cara estuprasse e matasse minha filha, eu mataria o cara. De todos os intelectuais que eu conheço, 99, aqui no Brasil 100, são tremendamente contra os Estados Unidos, a favor até da Al Qaeda. Mas eu não deixei o meu pensamento estremecer nem há 50 anos, não será hoje que eu vou me intimidar com nada. Então eu penso logicamente. A hiperpotência dos Estados Unidos tem o poder galáctico, interestelar... se me perguntar se ela tem o direito ou não, eu lembro uma frase de Hegel: se uma flor atravessar o caminho do Estado, este tem não apenas o direito, mas o dever de esmigalhar a flor. Isto é o pensamento em si, eu não posso fechar os olhos e achar que uma pulga é um elefante, eu não posso achar que você é um dinossauro, e não um intelectual mineiro, universal... Eu posso fazer como o papa, rezar para que não haja guerra, rezar para o bem da humanidade. Se é do direito do atacado atacar, ainda mais no nível dos Estados Unidos, eu acho que, guardadas as proporções do que se fala do governo Walker, se fosse qualquer outra nação, fora a brasileira, eles já teriam jogado sessenta bombas atômicas no mundo, e o mundo ajoelhado concordaria com tudo. Eles não o fizeram. Então, eles estão ainda na fronteira humanista total. O precedente de Hiroshima e Nagasaki é poderoso. Se os Estados Unidos são tudo isso que todo esse pessoal diz, eles teriam jogado as 60 bombas atômicas. Aquele país tinha kamikaze e um dos argumentos para se jogar os dois artefatos era não só em segundo plano apavorar a União Soviética, mas principalmente ganhar a guerra do Pacífico. Em geral, Douglas MacArthur não queria, ele queria ganhar gloriosamente ilha por ilha, derramando sangue e aí teria que ocupar Tóquio e seria impossível, eles iriam morrer lutando mesmo, mais do que contra os iraquianos, que jogaram bandeira branca, muito mais que os lobinhos nazistas que resistiram em Berlim. Hiroshima e Nagasaki fez com que o povo japonês, do dia para a noite, se transformasse não só em uma nação democrática, mas alinhada automaticamente aos Estados Unidos. Se fosse um pensamento terrível de potência demoníaca, superpoderosa que quer mal ao mundo, sessenta bombas atômicas já teriam sido lançadas... Eu previno para esse perigo.

Idelber - Você vê, na forma como o presidente Walker conduziu esse processo nos últimos dois anos, indicações de decadência definitiva do império, que anunciariam o quinto império brasileiro?

Mautner - Sim, porque a nossa fórmula da paz e da democracia é triunfante em última análise. Talleyrand dizia a Napoleão Bonaparte: a gente pode sentar um pouquinho em cima das baionetas, muito tempo não. Mas não é o que os Estados Unidos estão fazendo. Mas isso não me concerne, é do estado maior americano. Estou falando como pensador da ação histórica. A presença dos Estados Unidos sempre foi, inclusive, libertadora, durante toda a história. Influenciaram a Revolução Francesa, quanto a guilhotinar o rei, Thomas Jeferson quis falar a favor dele, e Jean-Paul Marat mandou-o calar a boca. Na Primeira Guerra Mundial, as tropas americanas ganharam e a democracia, acabando o império austro-húngaro e.. Lafaiete aqui estamos. O mesmo com a Segunda Guerra Mundial... Lafaiete aqui estamos. A “terceira guerra mundial” foi ganha sem se disparar um tiro. A União Soviética implodiu e a China de beijinho declara que é um governo e dois sistemas e tornar-se rico é glorioso e admitiu há meses os empresários na executiva do Comitê Central. O tempo todo a presença deles tem sido essa, mesmo a guerra no Iraque, mesmo contra todas as Nações Unidas, tiveram aliados, certo? Tiveram os australianos, o apoio da Itália, da Polônia, de vários países do Leste europeu, Japão, Inglaterra, Israel, Espanha. Um outro problema mais agudo disso tudo é que, por exemplo, a mesma irritação que levou o Nelson a debater quando eu falei da Igreja Universal, é o que está por detrás do presidente Walker. Eu digo: ele ainda está segurando humanisticamente uma direita baseada na Ku Klux Klan e na nação ariana, esta, sim, jogaria as sessenta bombas atômicas. Ele segura isso, então ainda está no democratic fringe. Acontece que pela primeira vez na terra da liberdade total, em que se compra metralhadora na esquina, pornô infantil, sadomasoquismo, há mil indústrias só para vários estilos de sádicos, masoquistas, fetichistas, tudo... Eu me lembro que na marcha de Washington em que eu, os Black Panters, os pacifistas marchamos protestando com a bandeira do Vietkong desfraldada, o que é a maior audácia... Pela primeira vez, por causa das drogas e do crime induzido pelas drogas, pela ilegalidade das drogas, que motivou inclusive a eleição de Reagan, inclusive Margareth Tatcher dizia, se dirigindo a nossa geração, tipo Clinton: belos pais vocês foram, ficaram se drogando, abandonando as crianças... Então essa responsabilidade puritana da família, do século XIX, segundo Tom Wolfe, do choque, como Michael Huntington coloca, entre as religiões, a importância das religiões. Na minha época, até meus 30, 40 anos, os meus colegas eram todos ateus, eles variavam de matizes de ateísmo, era o ateísmo de direita, o ateísmo liberal de centro, ateísmo das várias matizes de esquerda. Hoje em dia são todos religiosos. Portanto, a religião invadiu a psique humana, quem sabe por essa incrível e também formidável simultaneidade, de uma superpopulação junto com uma superautomação. São problemas que, se a voz de Deus é a voz do povo, e esta se manifesta através de eleições, é assim que serão resolvidos, seguindo mais uma vez o exemplo da democracia impoluta, que até durante a guerra civil continuou com eleições. Nesse sentido, não há o que comparar, uma ditadura é ditadura, nenhum ditador é bom, ele é mau. Há também a seguinte sensação: a globalização teria roubado as culturas de sua autenticidade, isso é loucura; são choques das mudanças, é como nascer, se tornar maturo, ah.. quer dizer que eu não posso me jogar do décimo andar, que eu não vôo, não sou um pássaro, não, não é não. A liberdade não é infinita, ela é a consciência cada vez maior das suas próprias fronteiras. Tudo isso faz parte do crescimento humano, e das novas responsabilidades incríveis com a tecnologia, com a comunicação, com a democracia instalada quase no mundo todo, os direitos humanos absorvidos, a importância das ONGs, todo esse processo que de dois em dois anos tem renovação. Então, qual é o medo? O medo está, primeiro, em que as massas parecem gostar da Igreja Universal, parecem gostar da família, e parecem gostar do bem contra o mal, e parecem gostar de uma sociedade não drogada, sim, senhor, é o que parece e em nome disso o que os seus governantes acham? Mais ainda essa influência da globalização é positiva, realça o artista, como na fenomenologia, quanto mais universal, mais regional, individual, intransferível. Nunca houve tamanha expressão da cultura brasileira no mundo, devido à globalização, não só pelo futebol, música brasileira, tudo. E a hiperinfluência de tudo, quem tem o maior poder, a maior riqueza de densidade vai acabar influenciando mais, que é o que eu acho e tenho certeza sobre o caso da cultura brasileira. Por exemplo, são questões diferentes, a música caipira, botaram a guitarra elétrica virou música sertaneja. Ela perdeu em valor ou ganhou em valor? Eu acho que ganhou em imensidão, em valor, identificou-se com o country do Texas, virou urbana. O jazz, que estava acabado, a bossa nova, que estava liquidada, voltaram agora. É o tempo todo esse fluxo de congraçamento com a graça divina. Lembre-se bem: tudo é muito imperfeito, senão não seria humano; e as coisas aconteceram muito rapidamente e cada vez mais rápido elas acontecem e acho que essas são questões sem fim. Mas veja bem, derrubou-se uma ditadura cruenta, inspirada, aliás, pela Odessa. Quando Adolf Hitler sucumbiu, Himmler foi, secretamente, tratar uma paz em separado com os aliados, que recusaram. Ele estava certo que a Inglaterra e os Estados Unidos fossem aceitar que ele passasse o III Reich para combater a União Soviética. Foi rechaçado por Roosevelt, Eisenhower, Patton. Ele tentou fugir e o lema da SS era "A lealdade é o nosso lema"; então ele foi o primeiro a trair o Führer. Em seguida, a operação Odessa veio com vários submarinos, dos quais muitos chegaram em Buenos Aires. Os tripulantes se instalaram na Argentina, no Paraguai, subiram para a Bolívia, onde se tornaram traficantes de cocaína, com o nome de los novios de la muerte, no Chile, fundaram uma cidade chamada Dignidad, de onde partiram as ordens e o próprio Pinochet visitava esse lugar. A outra parte ficou na África do Sul, onde eles inventaram o apartheid, já com sutileza pós- derrota de II guerra, dizendo que, para manter as culturas locais vivas, eles faziam uma antiglobalização: Lesoto tinha um negócio, Batusilândia outro; já era ecológico o aparth eid, anti- globalizante, inspirado pela SS. Dali eles inventaram o partido BAAT também. Que estranho Naqueles lugares tão muçulmanos surgir um ateísmo nacional, social. Na Síria, também e no Egito, também, ao se contar com os arabistas; e o nasseísmo é fruto desses ensinamentos oriundos da SS. E digo mais, na crise do canal de Suez, quem acabou com a arrogância do colonialismo francês e inglês foi o veto dos Estados Unidos, que foi como que uma bacia de água gelada na cara da França e da Inglaterra, porque eles não aceitaram aquela aventura de Suez com Israel. Até ali houve mais uma vez a presença dos Estados Unidos. Estou me tornando aqui defensor da grande democracia americana, porque eu não caio nos detalhes e nuanças, em suas críticas atuais, que, bem, dão o que falar, mas eu acho que o fundamental, como Joaquim Nabuco, grande amigo dos Estados Un idos, falou, seguido pelo Barão do Rio Branco, que instituiu nossa nação legalmente sacramentada em suas fronteiras, a aliança com os Estados Unidos é histórica desde o início. Eu acho que o resto são atritos de percurso, são acidentes mínimos. Eu sou contra a guerra, sou pela paz, mas quem sou eu para dizer se se pode ou não fazer isso, mesmo porque é inútil dizer isso. Vai haver outros problemas, vai haver a continuação indefinida dessa quarta guerra mundial quente, a questão da China com a experiência da pneumonia asiática, tem-se, não só, o homem- bomba, tem-se o homem- bomba atômica, o homem- bomba hidrogênio, o homem- varíola, o homem- pneumonia asiática, o homem peste negra de novo. Torna-se muito barato, hoje em dia; qualquer ginasiano formado em Química fabrica isso no seu arsenal bacteriológico. Então, já havia isso muito antes de meus escritos, e era o que eu falava já com meu pai, em 1948, o que eu falava com o Professor Mário Schemberg, em 1962, no Comitê Central, o que eu sempre falei com Robert Lowell, que, aliás, só gostava de falar isso, em 1968, 69, 70, nós só falávamos sobre isso e ele dizia: „e onde restará a liberdade?. E eu dizia: „talvez em Estocolmo. Mas só por um tempo, né? E eu dizia: „Ë, infelizmente, só por um tempo.

Chris - Tive a sensação que você vê o império americano ainda em ascensão, e não necessariamente em decadência. ( Mautner- Exatamente.) Então, de onde vem o quinto império brasileiro?

Mautner - Ah, é o seguinte, o mais importante, porque, para não haver toda essa situação de atrito, para haver essa compreensão... Por exemplo, na Europa, os eslavos, a guerra em Kosovo, são brancos que se odeiam, porque uns falam um pouco irlandês, eles se odeiam mutuamente. Aqui se tem a integração miscigenada das culturas. Então, esse é o exemplo brasileiro. Nós somos o contraponto do presidente Walker, ele está montado na própria guerra civil americana, que foi a mais cruenta das guerras civis. O presidente Lula da Silva é o presidente da paz, mesmo toda a nossa história é isso. Nós conseguimos tudo com paz, com negociação, entre abraços de afetuosidade e traição disfarçadas. Acho que esse é o maior legado do Brasil, fora a cultura da aventura da vida, porque, com o passar do tempo, muito em breve- aí vocês vão dizer qu e eu sou super otimista; e sou- eu acho que os problemas da fome, os problemas da educação, do emprego, das doenças vão ser resolvidos por essa incrível automação, pela tecnologia, pela inteligência humana. Mas o que vai ser preponderante é esse espírito humano de ser capaz de rir, perdoar, de abraçar e congraçar, estabelecer pontes e elos. Aqui os inimigos se abraçam, pode ser falsamente, mas se abraçam. Essa capacidade é total, mesmo na época da ditadura, a nossa foi a mais branda neste sentido, não só pela rotatividade dos generais, por manter a oposição incubada, por tudo. Porém, é uma obrigação do intelectual criticar, falar mal, ficar nervoso, exasperado. Eu fico exasperado e nervoso é com a possibilidade das sessenta bombas atômicas, com a subida da Ku Klux Klan, da nação ariana. Aí sim, mas a isso não vai chegar...

Jacobina - Mas será que não é projeto da Igreja Universal justamente acabar com esse Brasil profundo? Por outro lado, isso pode causar até uma melhoria social, econômica no Brasil, porque é da cultura protestante produzir riquezas, é uma adesão ao capitalismo neste sentido. Mas será que é necessário aderir mais ainda à moral protestante para entrar numa modernidade? Freyre dizia que não. E ela não seria uma ameaça ao Brasil do candomblé?

Mautner - É impossível. Um exemplo disso é o Antony Garotinho, que é evangélico, e em São Paulo encontrou-se com pais- de- santo. O Brasil nunca vai deixar de ser a maior nação católica, por mais que a Igreja Universal avance, ela poderá ter um grande quinhão e a Igreja Católica há de se influenciar positivamente, como se influenciou com a chegada do Padre Marcelo, com todo esse ativismo novo. Isso é o caldeirão da vida. Se você quiser ver tudo sob olhos sombrios ou realçar as coisas negativas, é uma posição. O Carlinhos Brown, que tem aquela obra social do candial, é um baiano, faz todos os riscos do Candomblé, tira as crianças menores da rua com timbalada, é evangélico.

Chris - Só para fazer jus, ele tem uma preocupação que é justa, porque na Bahia, acho que não no Rio, mas na Bahia há uma grande preocupação entre as lideranças do Candomblé, porque há evangélicos que têm poder através de programas de televisão e os usam para difamar o Candomblé.

Jacobina - Inclusive invadem mesmo para quebrar...

Mautner - Eu era, há aproximadamente 20 anos, chefe de gabinete de Gil, e me lembro do primeiro ataque dos evangélicos contra o candomblé. Aí todos os candomblés decidiram se reunir em frente à prefeitura. Claro que eu estava lá ao lado do candomblé, mas aquilo não rendeu, porque as brigas internas entre os terreiros eram muito maiores, e eles mesmos me diziam isso no palanque. Isso é a riqueza da Grécia.

Idelber - Nos anos 90, muitos aprenderam a sua lição, Chico Science foi um deles. Quem você vê como grandes continuadores, os que aprenderam a lição, digamos?

Mautner - Eu sou um pequeno fio do enorme tecido dessa tapeçaria que foi feita lá atrás. Eu estou em cima de ombros de gigantes, repassando a mensagem da liberdade, tudo que eu recebo. Então, dos novos, tem o Chico Science que você falou, tem o Moreno mais dois, tem muita gente aí, em cada estado brasileiro tem grupos se formando, tanto de música regional, misturando folclore, tradição com futurismo. Ou seja, brasilidade com músicas norte- americanas, que tal a música internacional. A presença enorme do mangue beat, que influenciou toda a turma daquela coisa experimental, que começou nos guetos americanos, de colocar ritmo na música cibernética. Então, há de tudo no Brasil, uma criatividade que remonta há anos, na banda de Pífanos, eu já ouvia isso aí, num cordel tem-se já toda uma imaginação surrealista. Eu acho que dos g rupos novos, tem o rap, o funk, o hip-hop. Eu sempre me lembro de um cara do rap que disse: Jorge, nós é literatura. E o rap é toda aquela dissonância, fragmentação sofisticadas da música alemã, de Koellreuther, Stockhausen, de Bela Bartók, tudo volta aqui à música popular com os tambores na frente. E no rap eles contam uma história, então eles têm uma preocupação com a rima, que parecia ter sido abolida. É uma nação homérica cantando e com grande dignidade, reclamando com rebeldia e rompendo como bebês numa nação que ainda não atingiu sua adolescência.

Chris - Minha próxima pergunta é sobre a importância ou centralidade da Bahia no imaginário contracultural. Em 1971 ou 72, você fez uma visita à Bahia, conheceu o cara do antológico, quando Gil e Caetano voltam... e você tem toda uma leitura sobre os trios elétricos, a cultura afro- baiana, a cultura negra da Bahia, já como elemento central da contracultura. Eu gostaria que você revisse essa época pelo viés da ligação entre contracultura e a cultura negra no Brasil.

Mautner - Eu acho que a contracultura, na verdade, ganhou esse nome por modelos europeus, mas a própria cultura brasileira sempre se nutriu da contracultura. Mas ali houve o reconhecimento maior e principalmente começou ali esse mostrar-se da dignidade da nação mestiça. E também, como consta no dicionário, eu sou o primeiro que rompeu a diferença entre cultura erudita e popular, mas isso não significava que fosse só da contracultura, muitos marxicistas se debruçaram sobre isso, muitos românticos clássicos, aliás, o Romantismo nasce com os irmãos Grimm, que se apropriam do conto popular, das lendas, dos contos para criança. No Brasil, essa mistura se dá em tom vivo de uma nação que canta e tem sofisticações nas letras que rivalizam com as poesias. Ali foi, inclusive, um ato político da própria ditadura propiciando a chegada da abertura, que sem autorização e proibição não poderia... mas, jamais, os governantes brasileiros iriam interromper alguma festa na senzala, porque seria muito perigoso. Foi naquele momento que se plasmou tudo, se plasmaram as influências, todos os estados reivindicando, porque o Brasil tem o problema do eixo Rio- São Paulo, este abriga os nordestinos, no caso do Lula, foi o berço da Arte Moderna de 22, também o tropicalismo se firmou lá. O Rio pode ser o tambor e radiador, mas São Paulo é de grande importância nisto. E os dois são muito criticados, não sem razão, porque a nação é continental; então, as pessoas do Sul se sentem rejeitadas, as do Oeste também, as do Amazonas, então, mais rejeitadas ainda, mas não importa. Eles todos se entendem, se comunicam pela unidade de futebol, pela música popular, pela língua e quanto mais diferenças, mais comunicação. Este aspecto de que, cada vez mais regional, cada vez mais universal torna-se uma realidade na cultura brasileira. É uma capacidade de absorção e de ousadia muito grande, da falta de preconceito e mesmo de conceito inicial, de entrega emocional, de curiosidade atiçante, no máximo ela se inicia com os mais desconfiados por um grande interrogatório ambivalente, mas que é apenas o início do grande abraço acolhedor.

Chris - Só para terminar, porque isso é também uma volta ao início da entrevista: O que foi o Kaos e qual foi sua importância na história cultural brasileira, se você quiser relacionar com a tropicália, que veio depois...

Mautner - O Kaos o próprio nome indica, só que ele é com K então quer se diferenciar da diversidade humana e do relativismo de tudo. Ele é relativístico, antifundamentalista, mas ele escolhe apaixonadamente cada opção, como Jesus nos recomenda a cada milionésimo de segundo a escolher entre o bem e o mau e assim fabricar o amor eterno, o perdão permanente e a ressurreição a cada instante. Ele é exposto a todas as influências, mesmo as influências nefastas tentam ser transformadas em influências positivas, é o que o Brasil faz. E o Kaos influenciou muita gente, eu costumo dizer que ele é um partido invisível; na hora em que ele é organizado, perde essa sua característica de movimento, ele já se cristalizou, durante três meses, no movimento em 61 para 62, quando ele saiu do meu controle; em menos de um mês eu tinha mais de dois mil partidários. Aí eu entrei para o Partido Comunista e dispensei todo o Kaos, que se esvaziou, porque aquilo era incontrolável. Eu chegava ao luxo de encaminhar nas reuniões, eu dizia: „Você tem cara de kruchevista, então eu encaminho você ao Partido Comunista; você tem cara de social- democrata, vai para a ação cultural; você não, você é astrólogo, então vai para os místicos... Era assim o Kaos com K: recomendando vocações. E até hoje ele teve grande importância no que eu escrevi, principalmente, da exposição depois, porque até 64 era bem conhecido, mas mais como escritor, e depois com a música brasileira, em que todas as entrevistas, todas as músicas, todas as letras, sejam minhas composições com Nelson, sejam as minhas a sós, com outros, nós sempre mandamos esta mensagem, que é esse Kaos, que é o mistério. Mas eu costumo definir o Kaos com quatro personalidades. Kaos quer dizer: kamaradas anarquistas organizando-se socialmente. Outra é: Kristo ama ondas sonoras. Terceira é: Kolofé, Axé, Oxossi, Saravá. E a quarta: Kada um escreve... Pode entrar todo mundo, menos nazista ou neonazista. Agora, tratando-se de nazista ou neonazista arrependido, pode. Ele entra depois de muito arrependimento e de muita penitência.

Chris - Mas republicanos do Bush, os revolucionários do Bush também entram? Você aceitaria Donald Runsfeld?

Mautner - Se ele se arrepender e se penitenciar, claro. Mesmo porque muita parte das idéias dele, se não forem racistas, se não forem anti esse congraçamento abençoado pela graça divina... E tem os ateus também, que, muitas vezes, são mais merecedores da graça divina que muitos crentes ou religiosos.