JOÃO GILBERTO NOLL E O FIM DA VIAGEM
                                                                                                                    Idelber Avelar
                                                                                                                    Tulane University

                 Em conhecido diálogo com Juan José Saer, Ricardo Piglia identificava três tendências fundamentais no romance contemporâneo: a primeira se vincularia à “poética da negatividade,” baseada numa recusa das convenções da cultura de massas e uma posição de negação radical cujo resultado final seria o silêncio. Os exemplos mencionados por Piglia são Samuel Beckett e, na Argentina, o próprio Juan José Saer, escritores que convergem ao "negar-se a entrar nessa espécie de manipulação que pressupõe a indústria cultural"  e ao desmontar os mitos de comunicação direta e transparência lingüística que fundamentam tal indústria. A poética da negatividade seria portanto uma crítica de todas as concepções instrumentais e pragmáticas de linguagem. Para tomar um exemplo argentino, Nadie nada nunca, de Saer, narra repetidamente o mistério que rodeia uma série de assasinatos de cavalos.  De forma circular e enigmática o romance esvazia de antemão toda identificação detetivesca, e chama atenção aos problemas de seleção e exclusão implícitos ao narrar o passado. Acenando ao silêncio e ao não dito, e de maneira análoga a Respiração artificial, de Piglia, também no romance de Saer "daquilo que não se pode falar se deve calar”.  A poética da negatividade herda o projeto suicida, moderno, de levar a linguagem a seus limites mais extremos, limites que podem incluir a total impossibilidade da própria linguagem.

             O segundo ramo do romance contemporâneo apontado por Piglia se identifica com o que se poderia chamar a "estratégia pós-moderna”, que apaga os limites entre as culturas erudita e de massas. Visível em autores como Thomas Pynchon, Philip Dick e, na Argentina, Manuel Puig, a estratégia pós-moderna aposta na recuperação da leitura massiva desfrutada pela literatura no século XIX, agora perdida para a mídia. Em lugar de diferenciar-se resolutamente das convenções massivas, como a poética da negatividade, o romance pós-moderno as apropria como parte de seu repertório: corte e montagem, fluência e rapidez de estilo, suspense, identificação dramática, todos esses marcos estilísticos, emprestados pela cultura de massas, se convertem em eixos do romance contemporâneo. Por oposição à poética do silêncio, o texto pós-moderno cultiva uma proliferação de mensagens contraditórias, saturando-se num mosaico de citações, que em suas formas mais críticas aposta na possibilidade de que os procedimentos estilísticos da cultura de massas possam ser apropriados para objetivos não alcançáveis através dela.

            A terceira estratégia observada por Piglia tenta renovar a literatura incorporando material não ficcional. Os exemplos aqui são as várias formas de littérature-vérité, jornalismo narrativo e testemunhos, tradições que se consolidariam, na Argentina, com a obra ímpar de Rodolfo Walsh. Estes gêneros experimentaram um notável florescimento durante as recentes ditaduras do Cone Sul, acompanhando a busca de formas alternativas de circulação de informação numa época de severa censura e controle sobre a mídia. Como aponta Tânia Pellegrini, “essa literatura, seja alegórica, de testemunho, memorialista ou jornalista em sua forma ... parecia ser guiada urgentemente pela necessidade de preencher o vazio criado pela censura”.  Movidos pela necessidade de narrar os fatos reais num momento em que a falsificação é a regra na mídia, o testemunho e o romance-reportagem respondem à crise da literatura abandonando a ficção por completo. Sua aposta seria na possibilidade de reconectar a experiência com a forma relato pela incorporação de técnicas dos jornais de circulação massiva (imediatismo, sensacionalismo, um apelo à “realidade”, etc.), num papel substitutivo-compensátorio que os justificaria em tempos de censura (ainda que as obras jornalístico-testemunhais mais críticas, como a de Walsh, incluam extensa reflexão sobre a decadência de tal função compensatória).

             Projetos narrativos mais sofisticados como o de Piglia não podem, claro, ser classificados fixamente sob nenhuma dessas rúbricas. Piglia compartilha com a poética da negatividade uma profunda suspeita das convenções da cultura de massas, mantendo a confiança no potencial desautomatizador da literatura, e portanto qualificando-se como herdeiro da vanguarda. Por outro lado, pese ao caráter experimental de sua ficção (especialmente Respiração Artificial e A Cidade Ausente), Piglia também incorpora esse retorno ao relato associado à estratégia pós-moderna. Apesar de sua visão negativa da pós-modernidade,  sua dívida com autores como Manuel Puig é manifesta. Piglia compartilha com Puig a convicção de que “a inovação técnica e o experimentalismo não são contraditórios com as formas populares”.  A terceira estratégia, a da não ficção, também informa a obra de Piglia, que reconhece sua inserção numa “tradição de literatura argentina que diz que para fazer política com a literatura não há que se fazer ficção . . . que se você quer intervir na política você tem que rasurar a ficção”.  A posição de Piglia com respeito à tríada de respostas à crise da literatura é então altamente complexa. Mantendo o impulso de negatividade da poética vanguardista, mas recorrendo a formas populares como a ficção científica e o romance policial, e fazendo-o enquanto tenta recuperar um certo potencial de intervenção política na história argentina, Piglia sabe que sua síntese destas três formas não poderá senão deixar um resíduo. Qual seria a dialética que poderia encarregar-se dessa síntese entre negatividade vanguardista, narratividade pós-moderna e veracidade testemunhal? Esta síntese não deixaria cinzas, restos, traços que resistiriam qualquer incorporação?  Não poderiam tais cinzas representar o ponto de partida de um outro projeto narrativo, irredutível às três estratégias mencionadas, assim como à sua síntese na obra de Piglia? O que aconteceria quando o que empurrasse a literatura já não fosse o desejo de sintetizar - restaurar, recuperar - e sim o de dissolver? Se os projetos descritos têm o objetivo comum de restaurar narrabilidade à experiência, poder-se-ia imaginar um projeto completamente alheio a tal empreitada? Se a literatura se rende ao seu divórcio da experiência, se aceita-o como um dado, quais tarefas seriam para ela ainda colocáveis? Por estas portas entramos na ficção de João Gilberto Noll.

             Seguindo-se à antologia de contos O Cego e a Dançarina (1980), no universo representado por A Fúria do Corpo, Bandoleiros, Rastros do Verão, Hotel Atlântico, O Quieto Animal da Esquina e Harmada,  os dois primeiros textos estão mais próximos do desenho do romance, enquanto que os outros são narrativas mais curtas, quase novelas, e focalizadas em personagens completamente alheios ao drama psicológico do romance burguês clássico. O comprimento dos textos de Noll é em si um elemento importante para a análise: sua concisão funciona como índice de seu auto-apagamento, de seu impulso ao silêncio. A ficção de Noll se escreve a partir de uma crítica ao romanção, às maquinarias narrativas cosmogônico-totalizantes que encontraram seu apogeu na Comédia Humana de Balzac, modelo privilegiado para as várias sagas realistas, regionalistas ou não, que proliferaram na literatura brasileira moderna. Como sugerem os títulos, os textos de Noll fazem alusão invariável a lugares transitórios, peregrinações, traços e restos da experiência, cenários sem historicidade, esvaziados de progressão e tempo:
 

Era antigo isso em mim: ter a noção de que eu precisava fazer alguma coisa sem saber exatamente o quê. O meu costume era ficar no meio do caminho, entretido com algum detalhe que acabava mudando meu rumo. Hoje já perdi as esperanças de recuperar a memória do que eu tinha que fazer lá no princípio (RV 60).
A ação se desloca a escuras ruelas laterais que perderam seus nomes, casas abandonadas, terrenos baldios, praças públicas em estado de decomposição, imagens metropolitanas já não caracterizadas pela profusão de signos e choques que marcavam a deriva do flâneur moderno. São anti-flaneurianas as cenas de O Quieto Animal da Esquina: “uma ruela fria onde nunca banha o sol de tão estreita, só para pedestres, com um constante cheiro de mijo” (QAE 7). Não restam na cidade marcas históricas; a metrópole vive num perpétuo day after, trazendo em si as marcas de uma destruição já bloqueada da memória. Uns poucos personagens, sobreviventes, tentam extrair significado do espaço deserto. As freqüentes viagens - sempre sem bagagem: "antes de olhar compulsivamente sobre o bagageiro me acorreu a lembrança de que eu não tinha nada comigo" (RV 7-8)   – se negam dialeticamente na forte parecença dos lugares, na imagem de um mundo em que a alteridade, enquanto tal, corre o risco de extinção. Na ficção de Noll é totalmente indiferente estar no Rio de Janeiro ou no Sul, no Amazonas ou Nordeste. Mesmo num país supostamente tão diversificado como o Brasil, uma banal mesmice pós-moderna cobre todo o território. Passando por experiências desprovidas de qualquer marco temporal além da sucessão esquizofrênica, não causal dos fatos, os narradores-protagonistas de Noll obtém e perdem empregos, são presos ou levados a algum hospital psiquiátrico, escapam, são atacados pela polícia, encontram gente que não parece ir a nenhum lugar tampouco, e que invariavelmente desaparece sem deixar rastros. Depois de umas poucas páginas o texto desemboca numa coda anti-climática e aparentemente arbitrária, deixando ao leitor uma incômoda sensação de incompletude. Noll toma, então, essa sequência banal de acontecimentos e a converte numa reflexão sobre a crise da narrabilidade da experiência.

             O paradoxo dos textos de Noll é que nada parece permanente, tudo está em fluxo, mas as próprias noções de devir e mudança parecem inadequadas. Noll seria então paradigmático de uma antinomia contemporânea assinalada por Fredric Jameson: "a equivalência entre um ritmo sem paralelo de mudança a todos os níveis da vida social e a estandarização sem paralelo de tudo - sentimentos e bens de consumo, linguagem e espaço construído - que pareceria incompatível com tal mutabilidade”.  O incômodo produzido pelos textos de Noll - a impressão de que tudo está em fluxo mas nada muda, já que a experiência nunca se converte em saber narrável – remete ao deslocamento que impõe a ficção de Noll à tradição moderna e baudelaireana do flâneur. Para Benjamin a figura do flâneur seria uma chave alegórica da crise na transmissibilidade da experiência. Radicalizadores dessa crise, os personagens de Noll pareceriam anunciar um mundo no qual mesmo a experiência superficial e desatenta del flâneur já não seria possível.

             O que Benjamin teorizou como a impossibilidade de converter o momento vivido [Erlebnis] em matéria narrável - ou seja, "experiência" no sentido forte de Erfahrung – tem  raízes na repetição interminável da cadeia de montagem, que força o sujeito a relacionar-se com o tempo como uma entidade externa à sua existência e história pessoais. A produção automatizada seria o paradigma desse esvaziamento do tempo: "o trabalhador não especializado é o mais degradado pela rotina das máquinas. Seu trabalho foi isolado da experiência”.  Se "os hábitos são a armadura da experiência”,  a cadeia de montagem moderna transforma o hábito num automatismo no qual nenhum movimento aprende com, nem depende do anterior. O passado do sujeito se encontraria assim bloqueado de seu presente. Seu trabalho não construiria nenhuma memória, e sim contribuiria à sua liquidação, já que cada operação do operário moderno está dissociada da anterior precisamente por ser sua exata repetição. Mesmo os momentos de prazer se transformam em ocos temporais, posto que a atrofia experiencial - a impossibilidade de organizar o vivido enquanto matéria narrável – esvazia, de antemão, a relação do sujeito com o tempo: "aquele que perde sua capacidade de ter experiências se sente lançado para fora do calendário. O habitante da cidade conhece esta sensação nos domingos”.  Para Benjamin os domingos urbanos encarnariam a experiência atrofiada, numa metáfora onde "domingo" não evoca o ócio, muito menos entretenimento, e sim experiência que é vivida, sofrida, mas não processável em sua narrabilidade, ou seja, Erlebnis que nunca adquire totalmente o estatuto de Erfahrung. No Passagen-Werk Benjamin referiu-se a este declínio da experiência a partir de uma crítica da noção nietzscheana de eterno retorno do mesmo.   A expressão de Nietzsche descreve aqui o estado preciso da experiência no mundo moderno: uma sequência de retornos onde nenhum presente acumula nem aprende nada do passado, em outras palavras, o eterno retorno como lugar absolutamente sem memória – imagem sem dúvida apocalíptica de um ponto de vista benjaminiano. A teoria da experiência na modernidade seria assim uma teoria do empobrecimiento da experiência, de sua impossibilidade de constituir-se enquanto matéria narrável, de seu aprisionamento dentro do eterno retorno.

             O caráter sintomaticamente epocal do flâneur surge dessa crise na transmissibilidade da experiência: o flâneur é testemunha de um mundo em que as memórias individuais foram arrebatadas à tradição coletiva. O que distingue o flâneur como figura moderna seria a mistura particular e paradoxal de cumplicidade e desdém na sua relação com as massas metropolitanas. Sendo parte delas, tendo nelas premissa de sua própria existência (a flânerie é um fenômeno urbano por excelência), e ao mesmo tempo tomando dessas massas uma distância marcada pelo desprezo, o flâneur representaria essa reserva de ócio ainda possível num estágio moderno e incompleto da evolução do capital: “o ócio do flâneur é um protesto contra a divisão do trabalho” . Numa comparação entre o man of the crowd de Edgar Allan Poe e o flâneur baudelaireano, Benjamin assinala que para o segundo ainda era possível uma certa compostura, pois “a Paris de Baudelaire preservava algumas marcas dos bons, velhos tempos”,  por exemplo na segurança de um olhar protegido por um vidro ou um cristal, mirada que vê sem ser vista. O flâneur seria então uma espécie própria ao momento do capital em que ainda se pode manter algum ponto ideal, arquimediano, ao qual se confere uma visão privilegiada da totalidade. Tal figura depende, para sua sobrevivência, da persistência da tradição dentro da metrópole moderna. Depois da implantação do taylorismo como lógica organizadora da produção, o flâneur encontraria seu límite histórico: a relação do flâneur com o tempo seria de puro gasto, claramente antagonista ao princípio taylorista de máxima produção no mínimo tempo. “A obsessão de Taylor, e a de seus colaboradores e sucessores, é a ‘guerra à flânerie’” . O flâneur seria aqui uma figura emblematicamente moderna em todos os sentidos, possibilitada pela modernização e expelida por esta mesma modernização, quando ela alcança um estágio posterior.

                 A arte que testemunha a emergência do flâneur - a tradição que vai de Baudelaire à vanguarda - é também a arte construída a partir da vontade de ostranenie, o choque da novidade que desautomatizaria a percepção. Segundo Benjamin, Baudelaire estava consciente, quando publicou As Flores do Mal, de que “as condições de recepção da poesía lírica haviam se tornado mais desfavoráveis” , devido ao fato (moderno) de que “só esporadicamente a poesía lírica preserva [wahrt] a experiência de seus leitores” . Radica aqui a origem da obsessão vanguardista com a novidade: uma arte agora obsoleta num mundo mercantilizado se veria forçada a “fazer do novo seu mais alto valor” . O que caracteriza o gesto baudelaireano é sua crença no potencial redentor do choque da novidade, a esperança de que se pudesse ali oferecer um vislumbre do núcleo eterno escondido atrás do véu mercantil. “Para Baudelaire, tratava-se de arrancar, num esforço heróico, “o ‘novo’ de dentro do eterno retorno do mesmo” . O choque da novidade recaptura o momento epifânico que redimiria uma experiência reificada. Como nota Fredric Jameson num ensaio recente, esse era o momento em que “o ser poderia de novo, por um breve momento, desocultar-se” . O que Jameson chama, na esteira de Heidegger, o desocultamiento ou des-esquecimento do ser seria precisamente o relato de um encontro iluminador ou epifânico com a alteridade. Tropo fundamental desse encontro sempre foi, modernamente, a viagem, seja no tempo ou no espaço. O flâneur seria então um viajante que faz de seu explorar a própria cidade uma excursão ao desconhecido. Para Noll, o problema reside no fato de que já não está dada a possibilidade de remeter essa deriva à outridade que antes mantinha e guiava a viagem na literatura moderna.

                 Ao contrário das viagens que constituiram um dos gêneros privilegiados da modernidade, de Swift a Humboldt e Jack Kerouac, as viagens de Noll não adotam nenhuma função liberadora, pedagógica ou edificante. A arquitetura do texto de Noll - a deriva constante, o foco na primeira pessoa, a tentativa individual de extrair significado do passado, a natureza temporalizada de tudo – convida uma aproximação com o Bildungsroman, exceto que nunca se estabelece nenhum Bildung, posto que os personagens perderam a capacidade de aprender com a experiência ou, o que nos leva ao mesmo, a experiência já não pode ser sintetizada para formar uma conciência individual.  Progressão, conflito e resolução são aqui categorias inoperantes. Enquanto a viagem moderna a uma outridade histórica, geográfica ou experiencial forçava o herói a uma síntese do passado e um salto em sua formação, a deriva na ficção de Noll é alheia a qualquer dialética. A irrupção de fragmentos do passado não desloca o protagonista para além da mesmice temporal à qual parece condenado. O processo de formação do sujeito põe em cena uma mirada ao passado que não encontra nada que identificar ou reconhecer.

                Os personagens quarentões, anônimos e sem emprego fixo de Noll se deixam entender, portanto, como deslocadores da tradição moderna do viajante / flâneur: inadaptados, negadores de seu entorno, que, entretanto, não se convertem em portadores de um princípio alternativo. Uma vez que a marginalidade perde o potencial redentor que uma vez teve, estes personagens já não podem encarnar nenhuma afirmação. A literatura de Noll carece, portanto, de toda pulsão restitutiva. A negação de uma realidade insuportável não tem lugar em nome de algo que possa transcendê-la, mas se resigna a ser imanente àquilo que nega. Enquanto o flâneur “mantém sempre a posse total de sua individualidade”  , os personagens cinzentos e anônimos de Noll se dissolveram na faticidade indiferenciada da experiência. Por oposição à memória involuntária em Proust, as reminiscências em Noll não se colocam a tarefa de “produzir experiência sinteticamente”. Daí a sensação de que, apesar da fragmentação e da desordem na memória do protagonista, não há, no final das contas, um quebra-cabeças que reconstruir, já que não importa muito o que ocorreu antes ou depois. Na progressão indiferenciada da esquizo-narrativa, o tiempo não é baralhado, e sim suspenso ou rasurado. Parte da confusão temporal própria às cubo-narrativas modernas permanece, mas seu potencial redentor (modernamente associado à sua relação desautomatizadora com a linearidade do tempo) dá mostras de declínio definitivo.

                 Como em Bandoleiros, romance que inclui uma visita do narrador aos Estados Unidos, depois da qual ele - também escritor – se angustia com a sensação de que parte sem ter nada que contar: “Essa sim ninguém perdoaria: eu ter conhecido a América-América e não ter extraído dela nenhuma ficção” (B 144). Bandoleiros seria uma contrapartida melancólica a numerosas narrativas de viagens em que os europeus regressavam da América enriquecidos em experiência, renovados por um contato de primeira mão com uma alteridade incontaminada. Ao longo de sua estadia nos EUA o narrador só vê réplicas paródicas do mais americano de todos os mitos, a história de vida singular, individual, e escuta os ecos da retórica de uma nova cruzada moral, que sugestivamente recorda o puritanismo e individualismo da era Reagan. Na viagem de volta ao Brasil o protagonista tropeça numa última mostra do pangossianismo da doxa norte-americana, essa crença imbatível de que se vive no melhor dos mundos possíveis:
 

 A moça me atendeu com a monótona polidez do pessoal de serviço americano. Não que eu preferisse uma moça mal-humorada, mas era indiscutivelmente monótono me confrontar mais uma vez com aquela presteza escorreita, aquela simpatia discreta como quem está fazendo a coisa mais importante do mundo, a crença cega de que cada um dá seu quinhão pela grandeza de alguma coisa que acaba sempre num país (B 152).
Seria instrutivo comparar o relato de sua passagem por Boston com outras narrativas de viagem na América contemporânea, sobretudo as de Wim Wenders e Baudrillard. A próposito do primeiro, César Guimarães mostrou que tanto em Der kurze Brief zum langen Abschied, de Peter Handke, como nos vários filmes de Wenders sobre a América, “os mitos construídos pelos americanos para explicar sua própia história (e cuja grande fábula continua sendo a conquista do Oeste) representam não só uma possibilidade de conhecimento, mas uma oportunidade de contar histórias”,  enquanto que para Noll a banalidade já saturou de tal maneira o horizonte do visível que só durante um breve momento na narrativa pode o narrador antecipar, de má fé, que “voltaria para o Brasil cheio de coisas novas para contar nos livros” (B 57). Se o protagonista de Der kurze Brief “aprende com os mitos americanos” e acredita que “ ainda há algo que ver e contar. Não só na paisagem, na arquitetura das cidades, estradas e desertos, mas também nas histórias contadas pelo cinema americano” , os narradores de Noll não reconhecem na cultura de massas nenhum relato da experiência já vivida, mas contemplam uma experiência coisificada e saturada de clichês condenada a repetir, ad infinitum, os giros lingüísticos de algum filme B ou comédia de televisão: “Mas todas as palavras que ele dizia, aquela casa, tudo aquilo me parecia de um filme antigo” (HA 38). Como em América, de Baudrillard, o simulacro impera. A diferença entre Baudrillard e Noll, entretanto, é que no segundo não encontramos rastros da fascinação que perpassa o livro de Baudrillard, ainda demasiado moderno em seu entusiasmo europeu por uma “utopia realizada” na América. Baudrillard está, sem dúvida, mais próximo de Humboldt e Tocqueville que de Noll, no culto anti-intelectual da experiência vivida (de cujo ressurgimento estetizado no século XX, a propósito, Benjamin suspeitava tanto, vendo nele as pegadas do fascismo): “Percorra dez mil milhas através da América e saberá muito mais sobre este país que todos os institutos de sociologia ou de ciência política reunidos” . Noll certamente se distanciaria desse otimismo de viajante, e não, claro, devido a alguma crença especial na sociologia ou na ciência política.

                 Ao retornar ao Rio o narrador de Bandoleiros reflete sobre o fracasso de seu último livro, Sol macabro, e sobre seu casamento abortado com Ada. Vê também seu amigo João - sua antítesis em tudo, a imagem do escritor de fé militante - morrer lentamente de doença misteriosa, derrota última que oferece um comentário ácido a seu glamoroso otimismo. Recordando “os seres especiais que pensávamos ser na juventude, todos uns perfeitos fracassados” (B 10), o narrador antecipa algumas imagens alegóricas do universo textual de Noll, como a de um vagabundo cego numa pensão tocando saxofone. Sem pagar o aluguel ou ouvir vozes há meses, “[c]omeçava a desconfiar que a pensão não existia mais. Só ele tinha ficado ali, sobrevivente” (B 27). A imagem desse cego tocando o sax só em seu quarto, sem saber se o mundo acabou, deixando-o como único sobrevivente, reaparece para o protagonista como alegoria de sua própria incapacidade de perceber a passagem do tempo como algo mais que um contínuo homogêneo: “é muito estranho alguém desconhecer que se está numa manhã de domingo. Qualquer outro dia pode. Mas se você não sabe que está dentro de um domingo e confessa sua ignorância, você parece que bebeu, pirou - um perigoso vagabundo” (B 12).

                 Depois disso encontramos um homem conhecido pelo narrador em Boston, um tal Steve, americano que passara parte de sua infância em Porto Alegre e “resolveu vir para cá, ver se podia restaurar a casa abandonada, morar ali” (B 38). Steve é um dos muitos fracassados rastreadores de origens dos romances de Noll.  Antigo estudante de Harvard, tinha sido drogado quase até a morte por médicos que tentavam curar sua depressão, e acabara deixando a universidade totalmente amnésico, incapaz inclusive de recordar o então recente assassinato de John F. Kennedy. Enquanto isso Ada, mulher do narrador, vai a Boston fazer um doutorado em “Sociedades Minimais”, novo credo que conquistava o mundo inteiro e ao que começou a dedicar-se religiosamente: “Não via mais na nacionalidade um critério avaliador de qualquer conteúdo humano. As nações sem exceção estavam condenadas. Restava o ingresso nas Sociedades Minimais” (B 45). Explicando como a Sociedade Minimal resolveria o problema da mortalidade - “Depois de morto o cara migra cada vez para uma mais perfeita Sociedade Minimal” (B 46) -  Ada ilustra a degeneração da utopia em paranóia totalizante, dogma religioso defendido militantemente. Alienado do dogma Minimal, o narrador regressa ao Brasil e conhece, no aeroporto, Steve, a quem depois encontrará de novo nos arrabaldes de Porto Alegre.

                 Depois de sua chegada ao Brasil o narrador recebe a notícia do ataque a Ada durante seu sono por Mary, outra militante Minimal que tentava provar uma tese, depois exposta num best-seller, sobre os perigos do sono. O best-seller de Mary é um dos quatro textos inseridos em Bandoleiros, além de Sol macabro, escrito pelo narrador – versão em abismo do romance de Noll e fracasso de vendas -, os manifestos militantes de João e a “poesia da fome” de um jovem mártir que havia decidido cometer o que para ele era o único ato político possível num país como o Brasil: o poema-suicídio. Tomando estes quatro textos como uma caricatura do espectro de possibilidades da literatura pós-catástrofe, os Minimais representariam a acomodação fácil, mesmo que excêntrica e escandalosa, a um mercado ansioso por novidades vendáveis; as “visões de grandezas futuras” (B 77) de João permanecem impermeáveis a experiências recentemente derrotadas e insistem em seguir com os mesmos dogmas militantes; o jovem faquir-poeta, com sua escrita “ingenuamente dolorida” (B 16) se oferece como corpo sacrificial, consumido no mesmo ato de afirmar-se. Steve, o que não escreve, o utópico da pura experiência vivida, termina bêbado e degenerado no vale próximo às ruínas de sua casa de infância. No contexto dessas alternativas - acomodação ao mercado, ativismo ingênuo, martírio auto-sacrificial ou o ágrafo romantismo beat/maldito - o projeto do narrador de uma literatura reflexivamente em processo de luto, corrosiva e cínica mas nunca auto-sacrificial, parece ser a única alternativa de alguma amplitude teórica. Mas o narrador, como a respiração mesma do texto de Noll, se vê num beco sem saída e não sabe como proceder.

                 O vazio mnemônico e experiencial dos textos de Noll é alegorizado pela falta de rosto e o anonimato dos personagens. Em Rastros do Verão o narrador-protagonista encontra na rodoviária um garoto para quem “qualquer um poderia aparecer e declarar ser seu pai que ele não teria como acreditar ou não -  a única imagem que tinha dele era a de um homem sem face” (RV 14). A narrativa se desdobra como se faltassem ao protagonista fatos significativos que relatar:
 

 Eu andara esses anos todos por aí, e que história pessoal eu poderia contar? Por essa geografia rarefeita quem tinha gerado comigo alguma memória duradoura? (RV 22).
 
Se é verdade que “me animava um pouco o fato de ainda existirem histórias por se fazer” (RV 46), essas histórias já não parecem disponíveis como experiência pessoal: “senti que eu tinha perdido a capacidade de entrar numa história com alguém” (RV 28). Durante suas visitas ao garoto, a medida do tempo é a sucessão de canções no rádio:
 
Uma locutora falava da carreira atribulada de Elza Soares. Depois Elza cantou um blues . . . [o] garoto falou que eu ouvisse que música incrível do Legião Urbana . . a locutora anunciava que agora vinha Grace Jones, pra arrebentar . . . A locutora dizia que tínhamos ouvido os Garotos da Rua . . . Janis Joplin gania seu Summertime . . . No rádio tocava Marina . . . No rádio tocava Fagner . . . Do quarto do garoto vinha B.B. King (RV 44-60).
Trata-se aqui de uma temporalidade sincopada e segmentada, tempo que se congelou como exterior à experiência. Quando a experiência se arrasta na repetição interminável do mesmo, a única pontuação temporal vem de fora, numa estrutura narrativa que replica a segmentação: os acontecimientos se desenrolam como tomadas cinematográficas bruscamente recortadas, numa sucessão de cenas onde nada se acumula nem se aprende. A dialética da experiência se encontra em suspenso, enfrentando-se perenemente à tarefa de começar de novo.

                 Hotel Atlântico narra o vagabundeio de um protagonista pelo Sul, em pensões e asilos, interrompida por uma amputação de perna ocasionada por uma agressão da polícia. O médico do lugar usa o “sucesso” da operação como triunfo eleitoral em sua campanha para prefeito, enquanto o narrador desenvolve forte cumplicidade com Sebastião, o enfermeiro negro que ao final foge com ele, alimentando a idéia de visitar seu povoado natal. A trajétoria do narrador é indistinguível da deterioração de seu corpo e da atrofia na memória que, por sua vez, é alegorizada fisicamente em contínuas perdas de sentidos e membros. Na busca genealógica de Sebastião de uma casa - guiado por uma foto amarelada, wenderiana - encontram a inevitável decepção: “vimos que ali não havia mais a casa de madera azul que ele me descrevia agora, nos mínimos detalhes, na esperança de eu ajudá-lo a procurar” (HA 90-1). No caminho de outra fracassada busca de origens, o narrador encontra a destituição de seu próprio corpo. Numa praia dos tempos de infância, perde sua audição e visão. As frases de Noll se tornam curtas, áridas, lexicamente pobres, como se tendessem ao silêncio:
 

Sebastião me sentou na areia. Ficou ao meu lado, com uma das mãos firme na minha nuca.
Aí Sebastião olhou o mar. Eu também, o mar escuro do sul.
Depois ele virou a cabeça para o lado e olhou para mim. Pelo movimento dos seus lábios eu só consegui ler a palavra mar.
Depois eu fiquei cego, não via mais o mar nem Sebastião (HA 98).
                 Em oposição às estratégias de multiplicação de nomes na obra de, por exemplo, Ricardo Piglia e Silviano Santiago (estratégias bem diferentes entre si, mas que permitem a ambos esquivar a crise da narrabilidade da experiência, ao pôr à disposição da ficção um infinito de experiências apócrifas e impessoais),  a busca falida de origens em Noll encena a impossibilidade de constituir um nome próprio. Como acontecimento iterativo, uma assinatura deve ser sempre repetível mas absolutamente única em cada uma de suas ocorrências. Em Noll nenhum encontro verdadeiro com a alteridade, nenhum momento epifânico, possibilita a reordenação da experiência passada que permitiria a emergência de um sujeito capaz de uma assinatura. O anonimato dos narradores-protagonistas é coerente com o conteúdo da experiência narrada. Para sujeitos já dissolvidos na pura faticidade, o nome próprio se converte numa âncora desde sempre inalcançável, imaginária. Com o nome próprio se desvanece toda interioridade: “Mesmo o que a rigor pertenceria ao universo da subjetividade, do privado, na ficção de Noll se transforma numa espécie de mistura, de lugar de passagem entre a exposição e a intimidade” . A dissolução dos nomes se extende aos substantivos comuns: “Não, meu menino, não, nem tudo tem nome nesta ingrata vida” (H 53). A ausência de uma instância sintetizadora faz com que o mundo e os personagens se arrastem no inomeável. As vitrines que Flora Süssekind indica como cruciais na literatura brasileira contemporânea - “teatralização da linguagem do espetáculo, convertendo-se a prosa em vitrine onde se expõem e observam personagens sem fundo, sem privacidade, quase imagens de vídeo num texto espelhado”  - também representam uma ruptura violenta entre os sujeitos e algum momento de seu passado, ruptura que lhes impede de reordenar sua experiência passada. A oposição entre Piglia/Santiago e Noll seria um contraste entre duas manifestações da impessoalidade na época do declínio do nome próprio. A antinomia (ou contradição em última instância dialetizável?) seria entre a profusão de Piglia e Santiago e a rarefação de Noll. Se em Piglia e Santiago a multiplicação de nomes próprios garante a produção de subjetividades apócrifas, em Noll o sujeito se dissolve na faticidade da experiência. Aqueles se filiam a uma constelação que também inclui Italo Calvino ou Thomas Pynchon - a profusão de histórias, a infinidade do apócrifo, a multiplicação dos nomes, enquanto este evoca outra linhagem, mais em sintonia com Peter Handke, Maurice Blanchot e Pierre Klossowski - a lenta desaparição, o paulatino desvanecimento do nome próprio.

                 O Bildungsroman em suspenso de Noll seria uma crônica da dissolução desse ponto arquimediano alguma vez representado pelo flâneur moderno. Submersos em acontecimentos cuja significação se esgota em sua mera faticidade, entendendo o tiempo vazia e homogeneamente, viajando por terras que já não oferecem outridades a partir das quais afirmar a identidade, os personagens de Noll se enfrentam ao bloqueio da experiência e do nome próprio. Sabemos, por Benjamin, que a experiência em seu sentido forte pressupõe uma incorporação da memória individual aos marcos da tradição coletiva. Este seria, então, o momento de colocar a pergunta pelo estatuto do coletivo nestes textos altamente fragmentados e privatizados.

                 O Quieto Animal da Esquina é narrado por um pobre poeta encampado  misteriosamente por uma rica família de imigrantes alemães, convertidos, sem razão aparente, em seus benefatores. Sem pedir nada em troca, exceto talvez que lhes ajude a escapar de seu tédio, alojam o jovem poeta e ex-ladrão em sua opulenta fazenda. O protagonista oscila constantemente entre fugir e recuperar algo significativo para a experiência ou conservar a comodidade presenteada, arriscando perder a própria possibilidade de viver histórias pessoais. Assalta-lhe a dúvida: “Não seria preferível adandonar aquele quarto e tentar esquecer a existência de Kurt, de Gerda, e ir atrás de uma situação menos cega” (QAE 46). O impulso depois já é de “ir me acostumando com o silêncio de todos os motivos que me faziam estar ali e não mais como invasor num prédio miserável, e tudo estaria bem” (QAE 43). Sua má fé lhe sugere a fantasia  de “encontrar uma mulher para a minha companhia, Kurt precisava abençoar essa união . . . me daria em vida talvez metade de seus tesouros” (QAE 54-5). Indivíduo desgarrado da existência coletiva, ele experimenta essa separação alternadamente como liberação e como motivo de culpa e melancolia.

             A barreira que separa as histórias coletivas das subjetivas é sacudida em duas ocasiões na narrativa, a primeira durante um protesto dos sem-terra no imenso latifúndio improdutivo. Os donos soltam todo o aparato repressivo policial e canino, e o protagonista olha da janela, recordando seu passado na miséria:

 
. . . lá em cima na estrada os sem-terra acendiam fósforos, uma ínfima chama se apagava e logo outra se acendia por perto, me debrucei na janela, me veio a lembrança de uma canção que a rapaziada costumava cantar nos tempos da Glória, mas eu não conseguia avançar do primeiro verso, e mesmo aquele único verso foi como que se diluindo na minha cabeça, em alguns minutos se desfez, na verdade parecia que de repente o meu destino tinha me ultrapassado, a mim e a todas as canções que costumavam sair de cor da minha boca, de tal modo, que chegaria um tempo em que viraria para trás e não teria mais nada que reconhecer. Daqui a pouco não precisarei mais mover uma palha para evitar o meu passado, pensei com desafogo (QAE 39).
A opção pela indiferença é a única possível aqui porque já não persiste nenhum laço orgânico entre as memórias individual e coletiva. O protagonista vê “cinco pessoas molambentas, todas de pé, em posição expectante, olhando insistentemente para mim. O que querem de mim?, me perguntei, e baixei a persiana” (QAE 50). O esquecimento da canção de infancia é o esquecimento dos momentos vividos que se vinculavam concretamente com a coletividade. A memória subjetiva se desloca a um lá fora perdido para o sujeito e indicado pela experiência coletiva. Ocasionalmente essa perda é motivo de “alívio”, como no exemplo citado; também com freqüência gera depressão e melancolia: “Eu não estaria melhor entre os presos, completamente inapetentes para a recompensa?” (QAE 70). O Quieto Animal da Esquina é um grande estudo do ressentimento e da má fé; concedendo ao jovem poeta a voz narrativa, fazendo com que seus mesquinhos cálculos e dúvidas ocasionais aflorem à superficie textual, Noll não permite a emergência de nenhum ponto transcendental desde o qual o ressentido poeta possa ser julgado.  No final, o  abraço do protagonista ao conformismo depois de um mergulho no rio - “e agora eu vestiria a roupa seca que Kurt me dava, e depois eu iria para a cama, me sossegar, dormir quem sabe, sonhar” (QAE 80) – quer pacificar sua memória, evitar qualquer pertubação causada pela ressonância da história coletiva mais além de suas janelas.

             O romance de Noll realiza uma operação interessante sobre a oposição entre o subjetivo e o coletivo. O texto instala a esfera subjetiva num espaço exterior que já não é contraditório, e sim coextensivo, à experiência coletiva enquanto tal,  mesmo que esta última só seja evocada de forma fantasmática, já como objeto perdido. Não há “oposição entre o individual e o coletivo” aqui, e sim um processo de rasura de toda subjetividade na medida em que ela se dissocia do coletivo - que também, por sua vez, desmorona como possibilidade para o protagonista. Em outras palavras, o poeta de Noll não se enfrenta a uma eleição entre as histórias pessoais ou a renúncia a elas pela coletividade. Trata-se, na verdade, de um fechar-se da história coletiva que também produz um exílio definitivo de qualquer possibilidade de nome próprio. A perda de histórias pessoais que contar é a perda da história coletiva; elas reconciliam-se negativamente – reconciliam-se enquanto perda, ou seja, enquanto alegoria. Se para o herói de, digamos, Tambores na Noite, de Bertolt Brecht, a opção é viver a experiência pessoal efêmera e amnésica (a vida burguesa com sua noiva) ou por outro lado renunciar a ela pela revolução, em Noll já não há nem mesmo uma história individual quando o coletivo se desvanece. O lá fora pálido da experiência coletiva perdida traz a única possibilidade de recarregar a também perdida memória subjetiva.

             O Quieto Animal da Esquina retrata assim o político como pura negatividade, ou seja,  retrata uma certa incapacidade de pensar o político - incapacidade que é a nossa, de nosso tempo. Depois de escrever o poema intitulado “O Quieto Animal da Esquina”, o protagonista deixa de escrever, e este último fragmento se converte em emblema de sua paralisia “na esquina”. Ele é um “animal” calado, domesticado e já incapaz de escolher o desconhecido em vez de uma medíocre segurança. Como sempre em Noll, no entanto, a chave é não julgar o personagem, e sim indagar sobre as condições que fazem sua eleição inevitável. Se ele nunca dobra a esquina nesse romance, já que o encontro com o político permanece suspenso e a reconciliação entre o singular e o coletivo se mantém negativa, alegórica, o tema regresa em Harmada, que teatraliza um encontro com a coletividade.

                 O narrador-protagonista de Harmada é um ator desempregado, preso num asilo de desocupados, onde passa a representar o papel de “narrador da tribo”, pondo em cena  histórias “que eu dizia serem episódios vividos ou testemunhados por mim” (H 46). Em suas sessões semanais de relatos, sente-se “como se essa narrativa fosse um fluido que saísse de mim, fininho, em direção a um mundo ainda desconhecido, onde todas as histórias seriam protegidas da maresia do esquecimento, qual um arquivo do tempo” (H 47). O ator de Noll narra como um colecionador que preserva um objeto raro. Sua aposta é na possibilidade de alcançar esse “breve colapso entre a aparência e o íntimo das coisas” (H 15), preservar experiência no sentido mais radical de mantê-la viva como matéria narrável. Esse é o legado e a tarefa da linguagem dramática que estrutura Harmada.

                 Ao longo do romance o imperativo de luto é a força propulsora das representações realizadas pelo protagonista. Anos mais tarde, depois de escapar do asilo, ele passa a produzir, junto com sua filha adotiva Cris, um monólogo teatral sobre o luto: “a peça, um monólogo de um autor mexicano, falava de uma mulher enlutada, por acreditar com ódio e desespero na eternidade. Isto, ela não se cobria de luto no corpo e na alma pela morte de alguém, pela finitude de um ser, não: o seu luto ao contrário expressava sua tristeza pela dura, pela descomunal herança da eternidade” (H 71). Esta adaptação inicia uma série de alusões a Pedro Páramo,  no tono rulfiano do regresso ao lar paterno e na imagem de espectros passados que rondam o presente, recordando-lhe a tarefa do luto. Em Pedro Páramo o regresso ao vilarejo de origem é um imperativo, uma ordem legada pela mãe moribunda. Para Rulfo esse retorno implica sempre fracasso, já que o pai também se encontra morto, e só os ecos de seu nome ainda ecoam no “vale de lágrimas”.  Como Pedro Páramo, Harmada retrata o legado e a herança enquanto imperativo de luto. A desolação do tempo e da história se presentifica como tarefa para uma memória espacializada, uma cena que toma a forma de uma frustrada viagem de regresso à casa de origem.
 Depois de estar já há algum tempo de volta à Harmada, havendo acumulado algumas memórias pessoais, reencontrado velhos amigos e revisitado edifícios em ruínas, a reconexão do protagonista com seu passado perdido leva ao clímax do texto, um encontro com a legendária figura de Pedro Harmada, fundador da cidade que traz seu nome. Na última cena, o narrador recorda um começo mítico:
 

... a data em que um homem chega de barco numa praia.
Este homem vem de uma guerra ferido num dos braços.
Ele sai do barco segurando o braço ferido e cai de joelhos. Gotas de sangue na areia.
Ele pensa: nestas terras daqui vou fundar uma cidade. (H 124).


O encontro final é um choque entre os tempos mítico e histórico. O protagonista é guiado por um menino a um homem que se identifica como Pedro Harmada. O fundador pretérito responde ao chamado do presente: “Sim, sou Pedro Harmada – o homem falou abrindo mais a porta” (H 126). O texto se nega a dizer quais formas tomaria esse encontro, já que a resposta de Pedro Harmada conclui a narrativa, deixando aberta a questão de como o espectro se dirigiria à história.
 A interrogante acerca do passado individual e coletivo regressa ambiguamente em Harmada: ator em todos os sentidos - “tudo aquilo que eu faço é como se estivesse representando, entende?” (H 27)-, o protagonista transmite à filha o hábito de inventar histórias falsas sobre o passado. Como em Bandoleiros, o estatuto do acontecimento narrativo (vivido, sonhado, escrito ou representado?) está sempre em questão. O próprio Pedro Harmada, ao chegar na praia de barco e pronunciar uma prototípica frase fundacional, apresenta uma versão bastante teatral e estilizada da figura do fundador. O narrador é levado a Pedro Harmada por um menino encontrado no apartamento que acaba de adquirir com o dinhero economizado com seu trabalho teatral. Depois de tentar perguntar ao menino de onde vinha e quem eram seus pais, percebe que o menino não lhe responde porque é mudo. Os dois não se comunicam genuinamente até que o narrador abandona a linguagem verbal e utiliza suas habilidades teatrais para representar uma pantomima, nesse que se converte no encontro crucial do romance:

 
aconteceu feito um relâmpago, assim de chofre: passei a imitar a cara de um macaco na frente do garoto, as mãos abrindo as orelhas para torná-las de abano, de repente eu dissolvia tudo e fazia outra careta, súbito já virava cambalhotas no piso azulejado, eu me transbordava de mim a cada gesto, revirava os olhos sem que me desse tempo de pensar na próxima maluquice, tudo saia de mim de instantâneo – e, como sempre, sem pensar, resolvi me prostrar diante do garoto e beijar seu pé, e o garoto aí sim começou a soltar as mais fogosas risadas e repentinamente iniciou a expelir os linguajares mais engrolados e indescifráveis, acompanhados continuamente pelas gargalhadas e gritos guturais, rascantes, possessos de uma extremada euforia, e foi então que entendi que aquele garoto era mudo (H 120).


Este será o menino que guiará o protagonista a uma parte deserta da cidade, onde entre casas destruídas conhecerá Pedro Harmada, na cena que fecha o romance. Pela elisão do simbólico, pela redução da linguagem ao seu balbucio primordial, o garoto mudo traz em si o murmuro das origens da polis. Nos sons desarticulados e balbuceantes produzidos por um menino mudo o narrador encontra o fio de Ariadne que o leva à experiência coletiva. Ao longo de Harmada, na verdade, Noll manufatura a utopia de uma linguagem não simbólica. Um dos momentos chave na peregrinação do narrador tem lugar quando conhece um cego que “explorava sons remotos” e “anunciava que finalmente tínhamos chegado à linguagem invertebrada, ou seja, aquela que desconhece qualquer viga mestra, aquela que não quer ir a ponto algum, aquela que em microexplosões se liquefaz na tela baça do cego” (H 80). Esta é a linguagem que o reconecta com os alicerces da polis: uma linguagem que se abre ao contingente, ao aleatório, como num balbucio puramente afetivo de um menino mudo.

                    Harmada revisita assim o romance de fundação, a tradição romanesca que se pergunta pelo momento fundacional da polis. Tal tradição, de José de Alencar a Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, ofereceu algumas das versões mais ideológicas e totalitárias da história brasileira. De modo teatral e estilizado, Harmada revisita-a ironicamente: o retrato já não é de uma fundação heróica, e sim de um esforço de memória que tenta reconstruir as ruínas. Enquanto que os textos prévios de Noll desconstruiam cuidadosamente a experiência individual e o nome próprio, Harmada representa o regresso a uma imagem fantasmática, espectral, do passado coletivo. O encontro entre a figura histórica do protagonista e o fundador mítico da cidade nos situa entre a volta espectral de fragmentos passados e a imagem de um futuro que permanece aberto. O regresso da dimensão coletiva não implica aqui uma afirmação confiante e ativista de um programa político. O momento afirmativo do texto jaz na sugestão de que na linguagem balbuceante e pre-simbólica do menino mudo se vislumbraria uma relação alternativa com a polis. Os murmuros incoerentes do menino pareceriam preservar espectros e fantasmas supostamente exorcizados. Num círculo completo, então, desde a desconstrução do nome próprio a um vago, frágil regresso do coletivo, Noll parece sugerir que a literatura ainda poderia, ao menos, ter uma tarefa afirmativa: desvelar a melancolia e o luto irresolutos, enterrados sob os heróicos mitos de fundações e identidades.