TELENOVELAS E POLÍTICA : O CR-P DA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 1994#


Mauro P. Porto*

Comunicação & Política, Nova Série, Vol. 1, n. 3, abril-julho 1995, pp. 55-76.

"A novela tem um pouco dessa obrigação. A gente consegue passar essa mensagem, subjetivamente, através de personagens caricatos, comediantes e críticos (...) Dentro das novelas a gente pode dar cutucadas fantásticas (...) É só o público começar a perceber que o que a gente tá falando é uma mensagem para começar a minar"

Suzana Vieira, atriz,
a personagem Rubra Rosa
da novela Fera Ferida.

          A televisão está transformando a política. Apesar de um consenso crescente na sociedade acerca da importância dos mídia para a análise política, permanecem fortes resistências no meio acadêmico, principalmente na ciência política brasileira, ao reconhecimento dessa importância.

          Vários acadêmicos, entretanto, têm utilizado diferentes termos para ressaltar as mudanças na política suscitadas pelos mídia: o "vídeo-poder" está transformando o homo sapiens em "homem ocular", inaugurando a era da "vídeo-política" (SARTORI, 1992); para Norberto Bobbio, a vitória de Berlusconi na Itália representa o triunfo da "videocracia", o poder que se exerce não mais [Final página 55] pela palavra, mas pela imagem (1); a TV está transformando rapidamente o modo pelo qual candidatos são "construídos" e como os políticos governam (SKIDMORE, 1993, p. 2).

          No Brasil poucos fenômenos sociais se caracterizam por um êxito tão marcante junto à população e um simultâneo descaso junto aos cientistas políticos como as telenovelas. Milhões de brasileiros assistem diariamente a "novela das oito", o gênero da programação de maior sucesso e audiência. Esse descaso é ainda mais injustificado dado o papel crescente das telenovelas brasileiras na ilustração e debate de questões políticas (PORTO, 1994b). Poucos estudos têm analisado as relações entre as novelas e o processo eleitoral, mas a partir da eleição presidencial de 1989 vários autores têm ressaltado essas relações (RUBIM, 1989; LIMA, 1990; WEBER, 1990; PORTO, 1993 e 1994a). Também a classe política tem reconhecido essa "invasão" de temas políticos nos programas de "entretenimento". O artigo 79 da lei 8.713 de 1993, que estabeleceu as normas para as eleições de 3 de outubro de 1994, afirma:

"É vedada às emissoras de televisão e radiodifusão a veiculação ou divulgação, durante o período da propaganda eleitoral gratuita, de filmes, novelas, miniséries ou qualquer outro programa, que faça alusão ou crítica qualquer candidato ou partido político, mesmo que de maneira subjetiva"(ELEIÇÕES, 1993, pp. 44-45).

          O legislador brasileiro reconheceu assim o direito de recurso dos partidos que se sentirem prejudicados por mensagens (mesmo que "subjetivas") veiculadas nas novelas durante o período da campanha eleitoral (2). O espaço da programação da TV tradicionalmente reduzido à condição de lazer tem sido reconhecido cada vez mais como um locus importante da realização da política. Uma das tendências mais recentes e importantes nos estudos da comunicação política tem sido exatamente a "expansão" das categorias de mensagens que são consideradas "políticas", ultrapassando as concepções centradas apenas na campanha eleitoral (NIMMO e SWANSON, 1990, p. 16). Os estudos culturais ingleses demonstraram que qualquer preocupação com a influência dos mídia na construção da cultura política teria que operar com uma definição mais ampla dos tipos de textos considerados relevantes, não se limitando aos noticiários e programas explicitamente "políticos" (MORLEY, 1990, pp. 129-130).

          O objetivo desse artigo é ressaltar a importância das novelas para a análise do processo político através do estudo de caso sobre o seu papel na construção do "Cenário de Representação da Política" (CR-P) da eleição presidencial de 1994. O texto é organizado da seguinte forma: apresentamos inicialmente o marco teórico que orienta a pesquisa, principalmente o conceito de "Cenário de Representação da Política", e a metodologia utilizada. Em seguida, passamos à análise das representações sobre o "mundo da política" construídas nas novelas "Renascer", "Fera Ferida" e "Pátria Minha" da Rede Globo. Finalmente, apresentamos algumas conclusões sobre as representações construídas nas novelas e suas implicações para o processo eleitoral de 1994.[Final página 56]

REFERENCIAL TEÓRICO

a) O Conceito de Representação

          A análise do papel das telenovelas na eleição presidencial de 1994 é feita a partir de uma tradição nas ciências sociais que tem ressaltado a questão das representações coletivas, as formas pelas quais qualquer sociedade designa a sua identidade e a de seus membros. A ênfase no plano simbólico coletivo - dos ideais, imagens e valores estabelecidos a partir do processo social - constituiu uma forma de reação ao individualismo até então predominante: a sociologia nasce no século XIX como reação à lógica férrea do comportamento individual maximizante do "homo economicus", "afirmando a existência de um referente coletivo que é inseparável do próprio indivíduo" (REIS, 1989, p. 25). O surgimento da sociologia se vincula, assim, à visão de que a sociedade tem procedência lógica sobre o indivíduo, onde o social não pode ser reduzido a fundamentos individuais (pp. 26-28).

          Um autor importante na "fundação" desse novo movimento teórico é Émile Durkheim que ressalta em sua obra as determinações do plano social sobre o individual, inscrevendo-se numa tradição metodológica coletivista. O conceito de "representação coletiva" ocupa um lugar importante na obra do pensador francês, ressaltando as formas pelas quais uma coletividade constrói uma imagem de si e de seus membros:

"Uma sociedade não se pode criar nem se recriar sem, ao mesmo tempo, criar um ideal. Essa criação não é para ela uma espécie de indulgência pela qual ela se completaria, uma vez formada; é o ato pelo qual ela se faz e refaz periodicamente (...) Isto porque uma sociedade não é constituída simplesmente pela massa de indivíduos que a compõem, pelo território que eles ocupam, pelas coisas de que servem, pelos movimentos que executam, mas, antes de tudo, pela idéia que faz de si mesma" (DURKHEIM, 1993, p. 170).

          É por meio das representações construídas coletivamente que os homens se compreendem, sendo possuídos por uma "força moral" que se impõe aos "espíritos particulares". Acima das representações privadas de cada indivíduo existiria um "mundo de noções-tipo" através do qual ele organiza suas idéias e elabora os conceitos. Assim, ainda que a capacidade de conceber se individualiza, para compreendê-la "é preciso referir-se às condições sociais de que ela depende" (p. 177).

          Na sociologia moderna, a questão dos valores e ideais ressurge com especial força na obra de Max Weber. Mas Weber, ainda que também reflita criticamente sobre o domínio do "homo economicus", não renuncia à visão atomizada individualista dos atores sociais: a coletividade não é uma realidade em si, pois só se torna inteligível a partir das relações entre comportamentos individuais (REIS, 1989, pp. 29-30). Apesar disso, Weber ressalta o papel das representações a partir da sua análise do sentido da ação social, sentido esse subjetivamente visado por um agente ou pelos agentes (WEBER, 1991, p. 4). O sentido da ação social pode ser determinado pelas representações, orientando o comportamento dos indivíduos:

"A interpretação da ação deve tomar nota do fato fundamentalmente importante de que aquelas formações coletivas ["Estado", "nação", "família"...], que fazem parte tanto do pensamento cotidiano quando do jurídico (ou de outras disciplinas), são [Final página 57] representações de algo que em parte existe e em parte pretende vigência, que se encontram na mente de pessoas reais (não apenas dos juízes e funcionários, mas também do "público") e pelas quais se orientam suas ações. Como tais, têm importância causal enorme, muitas vezes até dominante, para o desenrolar das ações das pessoas reais" (p. 9).

          A ação social não se orienta de acordo com a percepção da realidade "em si", como algo "dado" fora dos agentes, mas sim a partir das representações dessa realidade que são estabelecidas a partir das relações e práticas sociais. As formulações de Durkheim e Weber permitem desenvolver o conceito de representação enquanto um elemento integrante de qualquer realidade social e orientador da ação dos indivíduos. Tal concepção das representações e do plano simbólico se diferencia das proposições da ciência positivista, surgida em meados do século XIX, que relegava o imaginário a um plano secundário, considerando-o algo "ilusório": a tarefa da ciência deveria ser a de separar o imaginário do que era "verdadeiro" ou "real", em uma operação de "desvendamento " ou "desmitificação" (BACZKO, 1985, p. 297).

          A superação da divisão mecânica entre as representações e a "realidade" - concebidas como áreas distintas e autônomas - permite ainda chamar a atenção para o fato de a representação não se refere apenas à existência de uma realidade externa aos meios através dos quais ela (realidade) é representada (teoria mimética), mas sim a um processo em que essa mesma realidade é não só refletida, mas também constituída (LIMA, 1994a, p. 10). Nas sociedades centradas nos mídia ("media centric"), são eles a principal fonte de construção dos mapas cognitivos dos indivíduos (p. 11). Dessa forma, a televisão não pode ser vista como um mero condutor neutro através do qual informações chegam aos espectadores, como sugere o esquema linear emissor-mensagem-receptor. Stuart Hall (1989) afirma não existir nenhuma mensagem já dada na realidade que seja transplantada para as consciências dos receptores pela linguagem ou outros sistemas de comunicação. O domínio de um significado é estabelecido através da luta contínua sobre as "práticas representacionais", onde o sentido funciona como uma linguagem, não um espelho; é uma prática, não uma coisa (Ibidem). Nesse sentido, o processo da comunicação não pode ser definido de forma restrita como transporte de mensagens monolíticas que provocam certos "efeitos", entendidos principalmente como efeitos comportamentais, mas sim como "fórum cultural", um processo simbólico através do qual a realidade é produzida, mantida e transformada (NEWCOMB e HIRSCH, 1994). Partindo dessa perspectiva, o presente trabalho busca analisar o papel das telenovelas na construção de representações sobre o "mundo da política", ressaltando assim a sua importância para o estudo do processo político e da ação social. Discutiremos a seguir o papel das novelas na formação de um "Cenário de Representação" específico da política.

 
b) O Cenário de Representação da Política.
         

          A análise das representações sobre o "mundo da política" construídas nas novelas "Renascer", "Fera Ferida" e "Pátria Minha" é feita a partir de alguns pressupostos teóricos já desenvolvidos e utilizados em outros trabalhos (LIMA, 1994a e 1994b; PORTO, 1993 e 1994a). A partir do conceito gramsciano de hegemonia, a tentativa é a de desenvolver novos enfoques teóricos que permitam relacionar os mídia - particularmente a televisão - à luta pelo poder político. O con- [Final página 58] ceito de hegemonia permite destacar as formas pelas quais grupos dominantes justificam e mantêm o seu domínio e ainda conseguem obter o consenso ativo dos governados (GRAMSCI, 1989, p. 87). Ressalta, portanto, a importância da direção política e cultural na sociedade civil para o estabelecimento e defesa do poder político.

          Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pelo desenvolvimento de uma poderosa indústria cultural, os mídia eletrônicos - particularmente a TV - tornaram-se os agentes principais na construção do consenso e disseminação de representações sobre a realidade. As formas pelas quais a realidade é representada nos mídia desempenham um papel constitutivo na vida política e social e não são meros reflexos "a posteriori" dos eventos, em um processo dinâmico estabelecido através de "Cenários de Representação" (HALL, 1988).

         A partir desses pressupostos, Venício A. de Lima (1994a e 1994b) desenvolve o conceito de "Cenário de Representação da Política" (CR-P) para definir as formas pelas quais os mídia se relacionam com o processo político em geral e eleitoral em particular. Segundo Lima (1994b, p. 17),

"O CR-P é o espaço específico da representação política nas 'democracias representativas' contemporâneas, constituído e constituidor, lugar e objeto da articulação hegemônica total, construído em processos de longo prazo, nos e pelos mídia, sobretudo na e pela televisão. Como a hegemonia, o CR-P não pode nunca ser singular. Temos, portanto, de acrescentar ao conceito de CR-P o conceito de contra-CR-P ou de CR-P alternativo".

          O conceito de CR-P parte do pressuposto de que é possível decompor uma hegemonia, para efeitos de análise, em diversos "Cenários de Representação" específicos. Isso permite: a) particularizar, dentro do hegemônico, a representação da política; b) enfatizar os mídia - sobretudo a TV - como o mais eficaz "aparelho privado de hegemonia"; c) constriur um conceito que, ao contrário da noção mais abrangente de hegemonia, possa ser operacionalizado (3) (LIMA, 1994b, p. 7).

          Além disso, o CR-P constrói uma hipótese sobre a relação entre os mídia e o processo eleitoral, afirmando que um candidato, em eleições nacionais e majoritárias, dificilmente vencerá a disputa se não se ajustar a esse cenário dinâmico de representação da política (p. 18). Assim, candidatos e partidos que buscam uma "adaptação" ao CR-P tendem a obter êxito nas disputas eleitorais que se desenvolvem em sociedades onde os mídias tornaram-se instituições consolidadas. Portanto, propostas e candidatos que se contrapõem às representações desse cenário dificilmente terão êxito eleitoral.


METODOLOGIA

a) A perspectiva de longo prazo

          Uma das características principais da transição do paradigma dos "efeitos limitados" às novas teorias da comunicação política é o pressuposto de que os [Final página 59] efeitos dos mídia no processo eleitoral não devem ser buscados apenas nos curtos períodos da "campanha oficial", mas também no longo período que separa uma eleição de outra (4). O exame das mudanças das motivações no breve âmbito da campanha não é apto para verificar o impacto acumulativo da exposição dos meios de comunicação:

"No sólo durante las campãnas, sino también en los intervalos entre las mismas, los mass-media aportam perspectivas, acuñan imágenes de candidatos y partidos, ayudan a ilustrar cuestiones alrededor de las cuales se desarrollará una campaña, y definen la atmósfera y las zonas de sensibilidad que caracterizan a cualquier campaña en particular" (LANG e LANG, 1993, p. 80).

          Por estes motivos, o presente estudo sobre o papel das novelas na eleição presidencial de 1994 abrange um período bem anterior ao início da "campanha oficial", entre junho de 1993 e outubro de 1994. A pesquisa analisa a novela "Renascer" a partir de 9 de junho de 1993 até o seu último capítulo (13 de novembro de 1993) e a novela "Fera Ferida", desde o seu primeiro capítulo (15 de novembro de 1993) até o último (16 de julho de 1994), incluindo, portanto, 13 meses e cerca de 300 capítulos. A parte referente à novela "Pátria Minha", no período entre seu primeiro capítulo (18 de julho de 1993) e o último capítulo antes do primeiro turno da eleição presidencial (1 de outubro de 1994), está baseada no trabalho desenvolvido por duas pesquisadoras do GT Mídia e Política da UnB (MELO e OLIVEIRA, 1994).

b) Por que as novelas "Renascer", "Fera Ferida" e "Pátria Minha"?

          Como identificar os elementos constitutivos do "Cenário de Representação da Política" no marco do qual se desenvolveu o processo eleitoral de 1994? Por se tratar de efeitos do conteúdo de longo prazo dos mídia, a tarefa é identificar as representações sobre o "mundo da política" construídas na programação da televisão (LIMA, 1994a, p. 18). Um dos critérios básicos para definir o "lugar" da programação onde são construídas essas representações é a audiência dos programas. No período analisado, as telenovelas "Renascer", "Fera Ferida" e "Pátria Minha" estiveram entre os programas diários de maior audiência nas três maiores regiões metropolitanas do país, como mostra a Tabela 1.

TABELA 1
Programas de televisão de maior audiência nas regiões metropolitanas de São Paulo,
Rio de Janeiro e Belo Horizonte, entre junho de 1993 e outubro de 1994

Programa*

Período**

Média de audiência***

Renascer (novela)

21.06.93 a 05.12.93

60

A Viagem (novela)

28.03.94 a 09.10.94

57

Mulheres de Areia (novela)

21.06.93 a 18.07.93

55

Fera Ferida (novela)

08.11.93 a 17.07.94

54

O Mapa da Mina (novela)

21.06.93 a 18.07.93

54 [Final página 60]

Jornal Nacional (telejornal)

21.06.93 a 09.10.94

53

2. ed. jornal loval (telejornal)

21.06.93 a 09.10.94

52

Olho no Olho (novela)

16.08.93 a 24.04.94

49

Pátria Minha (novela)

18.07.94 a 09.10.94

48

Tropicaliente (novela)

22.04.94 a 09.10.94

48

Sonho Meu (novela)

13.09.93 a 22.05.94

47

Fonte: IBOPE (Relatório AIP - Audiência Individual por Programa).
* Todos são programas da Rede Globo.
** O período é o de coleta dos dados de audiência e não coincide necessariamente com o período de transmissão dos programas.
*** Porcentagem dos domicílios nas três regiões.

          Além da audiência, cabe ressaltar a importância das telenovelas na vida cultural da América Latina (MARTIN-BARBERO, 1991; MATTELART e MATTELART, 1989), passando a ter um papel crescente, no caso brasileiro, na constituição do imaginário político (PORTO, 1994b).

c) Procedimentos da Análise

          Para a identificação dos elementos constitutivos do CR-P nas telenovelas, adotou-se uma perspectiva metodológica qualitativa. Nessa perspectiva, a pergunta não é "como os mídia nos afetam?", mas sim "quais as interpretações de sentido e valor criadas nos mídia e qual a sua relação com o resto da vida?" (CHRISTIANS e CAREY, 1981). Um primeiro passo é , portanto, a avaliação das "interpretações de sentido e valor" sobre a política criadas nos mídia.

          No presente estudo isso é feito através da análise dos capítulos das novelas, buscando a identificação dos "significados dominantes ou preferenciais" (HALL, 1980, p. 134). A análise pressupõe, portanto, um esforço de caráter qualitativo no sentido de localizar as representações dominantes da política construídas nas telenovelas. Os passos do procedimento são: 1. anotam-se todas as passagens em que se tratou de temas políticos; 2. agrupam-se posteriormente essas passagens de acordo com alguns temas centrais.

          Uma objeção que poderia questionar a validade desses procedimentos metodológicos é a que se refere à afirmação da polissemia da mensagem ou do papel ativo dos receptores no processo da comunicação (5). Surgem então algumas questões importantes: qual a garantia de que a leitura do pesquisador coincide com a da audiência? Não poderá uma mesma representação ser decodificada de forma diferente por diferentes receptores?

          Uma discussão mais detalhada desse tema escapa aos propósitos desse trabalho, mas é importante chamar a atenção para o fato de que alguns autores têm afirmado os limites da polissemia da mensagem (CONDIT, 1994) e a trivialidade do conceito de "resistência" dos estudos que enfatizam o poder dos recepto- [Final página 61] res (SHOLLE, 1990). Além disso, como afirma Stuart Hall (1980, p. 134), a polissemia não deve ser confundida com pluralismo, pois toda sociedade tende a impor a sua classificação do mundo social, cultural e político. Essa classificação gera uma "ordem cultural dominante", apesar de não ser unívoca ou incontestada. Assim, ainda que seja possível decodificar uma mensagem de diversas formas, existe um padrão de "leituras preferenciais" nas quais estão inscritas toda a ordem social (p. 129).

          Sem desconhecer o problema da polissemia e do papel ativo da audiência, este trabalho busca identificar as "leituras preferenciais" estabelecidas nas novelas e que expressam uma interpretação hegemônica das questões políticas. Analisaremos a seguir as representações sobre o "mundo da política" construídas nas novelas "Renascer", "Fera Ferida" e "Pátria Minha". Esta análise possibilitará a identificação de alguns dos elementos constitutivos do Cenário de Representação da Política no marco do qual se desenvolveu o processo eleitoral de 1994.

A NOVELA "RENASCER"

a) A desqualificação da política

         A novela "Renascer" da Rede Globo constituiu um fórum importante na discussão de questões políticas, incluindo em seu enredo diversos episódios e temas da conjuntura nacional do período em que foi ao ar. Veremos a seguir como se construíram representações sobre a política nesse espaço da programação televisiva.

         O enredo da novela tem como protagonista principal o coronel José Inocêncio, um proprietário de terras na região do cacau no interior da Bahia. É em torno do coronel, suas posses e sua família, que se estrutura a narrativa.

         A política se faz presente em "Renascer" a partir de um dos filhos do coronel, João Bento, um advogado fracassado que vive às custas do pai. João Bento decide entrar na política e se candidatar a vereador, contando com o apoio do pai para sua eleição. Inicia então contatos com o governador do Estado e outras lideranças com o objetivo de conseguir uma legenda para a sua candidatura. Com a recusa do pai em "comprar" uma legenda, João Bento acaba desanimando de seus planos, reconhecendo as dificuldades por não ter "militância partidária" e "embasamento teórico".

         A candidatura do filho do coronel reforça uma característica comum a outras novelas da Rede Globo, a "desqualificação da política": todos os políticos são corruptos ou se utilizam da atividade política em benefício próprio, construindo uma generalização de atributos extremamente negativos a toda classe política. No caso de "Renascer", é exatamente um dos "piores" personagens da estória, ambicioso e parasita, que decide se dedicar a uma possível carreira política. Isso fica claro nos capítulos finais, durante um diálogo entre o coronel e Noberto, quando José Inocêncio afirma ter vendido uma fazenda em Goiás a um político. O coronel passa a escritura da fazenda por um terço do valor da propriedade porque o político não tinha como explicar de onde vinha tanto dinheiro, recebendo o pagamento em dólar e à vista. Norberto afirma então que "é por essas e outras razões que o doutor João Bentinho dava um grande político", vinculando diretamente a atividade política aos indivíduos corruptos, parasitas ou que atuam [Final página 62] sempre de acordo com seus interesses particulares. Essa desqualificação da política se torna evidente também em um diálogo entre o padre Lívio e o coronel, quando o último afirma que existem lugares piores que casas de "quengas", mas decide não falar sobre política. Assim, a política é comparada à prostituição.

b) A desqualificação do governo e do Estado.

         Outro tema importante na novela é a desqualificação do Estado e do governo, construindo representações sobre essas formações coletivas profundamente negativas. Outro filho do coronel, José Augusto, afirma em um dos diálogos o seguinte:

"Largou a coisa na mão do governo é fogo. Empata mesmo. Tudo fica mais caro, tudo fica mais difícil. Se precisa de uma pessoa para fazer um serviço, no governo tem dez. E mesmo esse que precisava acaba não fazendo nada porque não quer se sentir um trouxa perto daqueles outros nove lá que ganham muito mais que ele e ficam lá de barriga pro ar."

          O coronel então responde:

"Só que quem está pagando aqueles dez que não fazem nada somos nós, o povo, nós que estamos pisando cacau aqui na barraca, pagando imposto".

          José Augusto faz então uma análise das razões do fracasso do comunismo no Brasil e no mundo, avaliando o significado da Revolução Russa. Para o personagem, a causa desse fracasso estaria no fato de que as pessoas insistem em discutir "baboseiras", pois ficam "na esteira da história e não conseguem alcançá-la para entendê-la melhor". O Estado e o governo são concebidos assim como instituições ineficazes, construindo uma generalização profundamente negativa com relação aos funcionários públicos. Além disso, desqualificam-se as posições políticas de esquerda por defenderem idéias ultrapassadas e fracassadas, associando-as às posturas de defesa de um Estado inchado e ineficiente.

          Outro aspecto relevante deste diálogo, que estará presente em outros momentos da novela, é um estímulo quase explícito à sonegação de impostos. Francisco Weffort já chamou a atenção para o modo como os mídia brasileiros, sob pretexto de criticar as leis tributárias, estimulam abertamente a sonegação (WEFFORT, 1992, p. 50). Em um diálogo sobre a situação dos menores abandonados, o coronel José Inocêncio afirma que gostaria de saber para onde vai o dinheiro do imposto que paga. José Augusto afirma que não vai para a área de saúde e o padre Lívio diz que também não vai para o sistema educacional. O coronel então pergunta: "De quem é a culpa? Do cidadão que sonega imposto ou daquele que rouba o imposto dos que pagam religiosamente?". O padre responde que os dois são culpados e o coronel acaba concordando, mas as suas perguntas parecem pretender legitimar as atitudes dos que sonegam o imposto sob a alegação de que o dinheiro irá cair nas mãos dos corruptos.

c) A discussão da atualidade

         No mesmo diálogo, aparece outra característica muito importante da novela "Renascer": a discussão dos episódios da atualidade brasileira. Os personagens debatem a questão do combate aos corruptos, mencionando o fato de que "mandaram prender um deles", em uma clara alusão à ordem de prisão de PC Farias, então foragido. O coronel afirma que os corruptos foram avisados e que [Final página 63] "já estão é muito longe daqui com o dinheiro no bolso e rindo da cara da gente".

         Durante uma conversa entre João Bento e José Augusto, o primeiro questiona a decisão do irmão de retornar à carreira de médico, sob o argumento de que "o país está estrebuchando na UTI". João Bento menciona então uma matéria da televisão sobre o desperdício de remédios do governo e a impunidade, e o irmão responde: "e já se está discutindo quem vai ser o Presidente da República". Inclui-se assim o tema das eleições presidenciais no enredo a partir de uma discussão que ressalta a ineficácia do governo e uma atitude pessimista com relação à classe política e à conjuntura política.

         Em um dos capítulos, os personagens criticam a revisão constitucional ("estão brincando com o povo") e menciona-se que "um deles" tem afirmado que o Congresso está cheio de "picaretas", em uma clara referência às declarações do candidato do PT à Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva. José Augusto afirma que "o problema é que o nosso país é pouco politizado e é raro o eleitor que tem consciência do valor do seu voto". O coronel diz então acreditar que a democracia está em perigo devido à incompetência dos políticos.

         A discussão acerca do processo político e dos episódios do dia-a-dia aumentou durante o desenrolar da estória. Em um dos capítulos, os personagens estabelecem um longo diálogo, com 6 minutos e 20 segundos, acerca da conjuntura política do país, incluindo temas como o afastamento do Presidente Collor e a CPI do orçamento (6). A cena começou com o noticiário da televisão sobre a CPI do orçamento e deu origem a uma intensa discussão. O coronel José Inocêncio afirma não saber com que moral o Congresso cassou o presidente e o padre Lívio argumenta que quem cassou o chefe do executivo não foi o Congresso, mas sim o povo. O padre diz que fechar o Congresso não é o caminho, pois quando isso ocorreu o resultado foram "20 anos de silêncio", de desaparecidos, torturados e mortos nos porões da ditadura. O coronel então afirma: "O certo não é fechar o Congresso não, né padre? É limpar, tirar de lá todos esses desonestos, botar toda essa raça na cadeia".

         Foi com a transmissão dessa fala do coronel José Inocêncio que o presidente do Partido Popular, Álvaro Dias, abriu o programa do seu partido, afirmando que "essa indignação do José Inocêncio, da novela Renascer, é nacional. Ela toma conta de todo o país" (7). A inclusão de um trecho de novela no horário político de um partido é um exemplo eloqüente do processo pelo qual a TV "invade" o espaço da política, fazendo com que setores da classe política busquem uma "adaptação" às temáticas e imagens das novelas.

d) O quadro de crise social

         "Renascer" incluiu em seu enredo a discussão sobre temas polêmicos que raramente se fazem presentes na televisão brasileira. A partir do personagem Tião Galinha, a novela discutiu questões como a reforma agrária e a fome. O sociólogo Herbert de Souza - o Betinho - coordenador da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, chamou a atenção para o importante papel da no- [Final página 64] vela na discussão das questões sociais: "O Benedito Ruy Barbosa chegou a falar de fome na novela Renascer, através daquele personagem feito pelo Osmar Prado. Nós estamos precisando de mais coisas assim" (8). Através da personagem Teca, "Renascer" incluiu o tema dos menores de rua em seu enredo, apresentando cenas do noticiário da TV sobre o massacre de menores da Candelária, no Rio de Janeiro.

         Outro tema que ganhou bastante espaço em "Renascer" foi a questão da educação, principalmente a partir da professora Lu. Em um dos capítulos, a professora fala sobre os péssimos salários dos professores no Brasil, pois os mesmos estão esquecidos pelos que estão no poder. Afirma então que quando os professores protestam são confundidos com arruaceiros e apanham da polícia, fazendo referência à paralisação dos professores do Estado de São Paulo. Rebatendo os rumores espalhados pelo governador de São Paulo, Luíz Antonio Fleury Filho, de que a CUT havia pago merchandising para divulgar a sua greve, o autor da novela, Benedito Ruy Barbosa, afirma: "Abordar tal assunto é apenas fruto da consciência do próprio autor, que não se aliena à incrível situação dos professores no Estado de São Paulo e no país (...) O autor passa nove meses contando uma História. É uma obrigação, enquanto intelectual, pretender deixar algo de residual na cabeça dos telespectadores" (9).

         A professora Lu aproveitou suas aulas para falar da importância da democracia, afirmando ser difícil para os alunos entenderem este conceito já que "pra vocês aqui o poder é o dono das terras onde seus pais trabalham" e acaba se irritando quando uma das alunas afirma não estar entendendo "nada dessa prosa". Passa então o comando da aula para a assistente que ressalta a importância do voto, pois "estão querendo não educar o povo para se manterem no poder".

A NOVELA "FERA FERIDA"

a) A desqualificação da política

         A novela "Fera Ferida", de Aguinaldo Silva, sucedeu "Renascer" no horário das 20 horas. O enredo, que tem lugar na imaginária cidade de Tubiacanga, foi inspirado na obra de Lima Barreto, tendo incluído diversos temas, personagens e episódios que tiveram um papel importante na construção de representações sobre o mundo da política.

         O personagem principal da estória é Raimundo Flamel, nome adotado por Feliciano Filho para voltar à cidade e vingar a morte dos pais. Seu pai, então prefeito da cidade, descobre uma suposta pepita de ouro, desencadeando uma corrida em busca do precioso metal. Descobre-se depois que o suposto ouro não tinha qualquer valor e o dinheiro recolhido da população para a "empresa municipal de mineração" desaparece misteriosamente. Alguns dos "donos do poder" de Tubiacanga estimulam uma revolta popular e a perseguição à família do prefeito que acaba morrendo com a esposa durante a fuga da cidade. Sobra apenas o filho que voltará anos mais tarde para vingar a [Final página 65] morte dos pais.

         O "mundo da política" está presente em todo o decorrer da narrativa. Uma das características das representações da política na novela é a sua desqualificação, construindo-se generalizações extremamente negativas à atividade política e aos políticos. Um dos personagens principais na construção desse tipo de representação é Demóstenes Maçaranduba, o prefeito da cidade. Demóstenes é um político corrupto, inescrupuloso, que se utiliza dos mais diversos meios para desviar o dinheiro público. É a imagem do político como o indivíduo que só concebe a política como meio de favorecimento próprio. O caráter desse personagem fica demonstrado em um dos episódios, quando o prefeito toma sem saber o "xixi de defunto". O líquido, que havia brotado no lugar onde os pais de Flamel foram enterrados, tinha o poder mágico de fazer com que as pessoas dissessem a verdade em público. O prefeito diz então na praça central da cidade: "povo só serve para votar na gente e pagar imposto. O povo é lixo. Eu vou roubar. Eu vou fazer o governo mais corrupto que esse país já viu". É assim que o prefeito concebe seus objetivos e o povo da cidade.

         Demóstenes é também a figura do político com o dom da oratória, mas uma oratória destinada a enganar os eleitores. Em um dos episódios, o prefeito afirma: "às vezes acho que a vida de um político não passa de preparar discursos". Nesse e em outros episódios a política é associada ao "fingimento".

         Outro personagem importante na construção da desqualificação da política é o vereador Numa Pompílio de Castro, líder da chamada oposição, mas que sempre compactua e se submete aos demais "donos do poder" de Tubiacanga. Também o vereador concebe a política como meio de enriquecimento através das irregularidades e como a arte da mentira e das falsas promessas. Em determinado momento, ele afirma que "o hábito de fazer promessas sem cumprir são ossos do ofício do político". Em outro episódio, o vereador diz que é preciso aproveitar o forte temporal que cai na cidade para fazer uma visita à periferia: "Aí é hora do político aparecer por lá, falar em dar apoio, fazer uma promessa, falar em solidariedade. Maior a desgraça, mais fundo bate a promessa". Além disso, o vereador se utiliza da "verba de representação" da câmara para os mais diversos fins particulares, como a compra de ternos.

         Outro personagem importante é o major Emiliano Bentes, um militar reformado que personifica o autoritarismo na estória. O major se associa ao prefeito para dominar a cidade, apresentando-se como o responsável pela "segurança nacional" de Tubiacanga. Para o major Bentes, os políticos também são pessoas que se utilizam da oratória para enganar o povo: "falam, falam e não dizem nada". Em um dos diálogos, afirma que a política não tem nada a ver com qualidades como amizade, nobreza de caráter e solidariedade.

         Mas não são só os "poderosos" de Tubiacanga que concebem a política como uma atividade suja, construindo generalizações negativas a todos os políticos. Também os moradores da cidade assim se referem à política. Uma das personagens de maior credibilidade na novela, a costureira Margarida Weber, após receber um jornal com denúncias contra o prefeito, afirma: "isso só vem confirmar o que eu digo. Para que servem os políticos? Para nada ... A maioria é salafrária, é corrupta, e quando não são ladrões, são incompetentes e incapazes". A citação é bastante explícita ao ressaltar a inutilidade e a incompetência da classe política. [Final página 66] No mesmo capítulo, aparecem alguns depoimentos de populares nas ruas que afirmam: "Essa gente vive disso mesmo. Só sabe mentir e enganar"; "político não deveria existir. Todos eles não prestam e é uma praga"; "não serve para nada, a não ser roubar quem trabalha direito e paga imposto que nem nós aqui".

         Também os "heróis" da estória, que representam o bem em sua luta contra o mal, têm a mesma concepção da política. Flamel diz ao espírito de seu pai no cemitério: "O senhor sabe que não existe justiça nesta cidade ... o senhor sabe que o prefeito, a política, os políticos são corruptos, são ladrões ... Quem vai fazer essas pessoas pagarem pelo seu crime?". Em um dos diálogos o poeta Afonso Henriques diz a Flamel: "seu pai era um homem de bem. Era político como não se tem mais hoje em dia, que acreditava na felicidade do povo. Acreditava que a política era apenas um instrumento, um meio para se levar a felicidade aos outros". O personagem principal da novela responde: "É isso sim, Afonso Henriques, eu quero me aliar a você porque eu voltei para essa cidade para terminar com essa corja de políticos". Desse modo, política como meio de se levar a felicidade aos outros é coisa do passado, é algo que já não existe. Também a "mocinha" da estória, Linda Inês, se refere à política como atividade suja. Comparando a política com as ovelhas da sua criação, ela afirma que "as ovelhas são muito mais limpas que os políticos".

         A corrupção é uma prática permanente no mundo da política de "Fera Ferida". Durante o desenvolvimento da trama, os políticos se envolvem nos mais diversos esquemas de corrupção. No caso do prefeito e da prefeitura, algumas das ilicitudes foram: a utilização do dinheiro da defesa civil para jantares; atraso no pagamento dos fornecedores para desviar o dinheiro; o pagamento de diversos tipos de despesas privadas do prefeito e de funcionários com dinheiro da prefeitura; o beneficiamento de empreiteiras; a inclusão de emendas no orçamento da União; a construção de obras superfaturadas; o desvio de verbas do governo federal destinadas à construção de casas para os sem-teto; a isenção do imposto territorial para os "poderosos" da cidade. Um dos "esquemas" montados pelo prefeito Demóstenes foi a construção de um "gato", fazendo com que a eletricidade chegasse ilegalmente até Tubiacanga por dois anos. Durante todo esse tempo em que a cidade recebeu eletricidade de graça, o prefeito continuou a cobrar as contas dos moradores.

 
b) A desqualificação do Estado e do governo

          Em "Fera Ferida", o Estado e o governo são representados como espaços da incompetência e da corrupção, instituições sem utilidade para a vida dos moradores de Tubiacanga. A prefeitura da cidade é um lugar onde não existe trabalho ou atividades. O prefeito passa o dia cortando papel, sem ter o que fazer, e suas gavetas e armários estão sempre cheios de folhas em branco. Em um dos episódios, o prefeito diz à Ilka Tibiriçá, sua cunhada e funcionária da prefeitura: "se passar da hora do final do expediente, que eu agora adiantei para as três horas da tarde, você por favor fecha essa quitanda". Ilka é uma funcionária que realiza diversas despesas privadas e manda colocar na conta da prefeitura. Em um dos capítulos, afirma: "Como se algum prefeito trabalhasse nesse país". Assim, são apresentadas generalizações extremamente negativas a todo poder executivo municipal. Essa generalização atinge também o governo. A per- [Final página 67] sonagem Lucineide, empregada de Raimundo Flamel, afirma em um dos diálogos: "até parece que alguém trabalha no governo".

          Também a câmara de vereadores da cidade é permanentemente desqualificada. Há um constante destaque para a permanente falta de quórum que paralisa a instituição. O único fator que atrai os vereadores à câmara é o "jeton". É através desse argumento que Rubra Rosa convence seu marido, o vereador Numa Pompílio de Castro, a comparecer às sessões.

c) A discussão da atualidade

          A novela "Fera Ferida" construiu diversas representações sobre personagens e fatos da atualidade, às vezes implicita, às vezes explicitamente. Tanto Rubra Rosa como Ilka Tibiriçá falam do "topetudo", em uma referência irônica e implícita ao Presidente da República, Itamar Franco. Em um dos diálogos, o prefeito diz ao major Bentes: "Eu tenho minhas fontes na capital. Até mesmo aquele deputado que cuida dos nossos interesses orçamentários eu mobilizei". O major então pergunta: "o baixinho?", referindo-se de forma também implícita ao deputado Genebaldo Correia (PMDB-BA), envolvido nas denúncias sobre o esquema de corrupção montado na Comissão de Orçamento do Congresso.

          Acontecimentos recentes da história do país se repetiram em Tubiacanga. Uma CPI foi instalada contra o prefeito, iniciando o seu processo de impeachment. Como no episódio Collor, o prefeito acaba renunciando para escapar do julgamento. Em um dos capítulos, Rubra Rosa diz que não dá mais cheques na padaria para que não terminem em alguma CPI.

          Em uma das tentativas de retratar na novela episódios da atualidade, os autores de "Fera Ferida" entraram em conflito com a direção da Rede Globo. Havia a intenção de repetir na novela o episódio em que uma modelo foi fotografada sem calcinha ao lado do Presidente Itamar Franco no Sambódromo, Rio de Janeiro. Os autores pretendiam colocar o prefeito Demóstenes e a atriz Perla Menescal na mesma situação ocorrida no carnaval carioca. O Vice-Presidente de Operações da Globo, José Bonifácio de Oliveira, o Boni, teria determinado a suspensão da cena sob a alegação de que o momento político era muito complicado (10). Um dos co-autores da novela, Ricardo Linhares, afirmou acreditar que a cena enriqueceria a história, não passando de um mero "comentário circunstancial" que se perderia no tempo (11). Mas devido à pressão da direção da emissora, o episódio acabou alterado. Em lugar da cena da calcinha, o escândalo na novela se estabelece quando, em cerimônia de homenagem na câmara de vereadores, o prefeito presenteia a atriz com um cheque sem fundos de 150 mil dólares. Mas a semelhança com o episódio "real" permaneceu: o prefeito afirmará depois que não tinha condições de ver que a atriz estava de mini-saia.

         Até declarações de candidatos à Presidência foram incluídas na novela. Em um dos capítulos, o prefeito Demóstenes afirma ter "o pé na cozinha", em uma clara alusão às declarações, amplamente divulgadas pela imprensa, do candidato Fernando Henrique Cardoso.[Final página 68]

         Outra característica da discussão sobre a atualidade foi a inclusão do movimento de pequenas empresas na novela. Aconteceram pelo menos nove diálogos dedicados a propagandear os objetivos do movimento, apresentando-se um "merchandising político" que construiu representações favoráveis às medidas de apoio às pequenas empresas. Além desses diálogos, deve-se destacar a figura da jovem Linda Inês, cuja tecelagem é apresentada como exemplo de pequena empresa.

d) Personagens da ficção e candidatos da "vida real"

         "Fera Ferida" desempenhou um papel complexo e contraditório ao apresentar personagens que compunham determinadas "noções-tipo" sobre a classe política, principalmente aqueles membros dessa classe em disputa pelo voto do eleitor. Tais personagens permitiram, em maior ou menor grau, uma identificação com candidatos à presidência da eleição de 1994, ou pelo menos contribuíram para construir representações sobre "tipos ideais" de candidatos.

         Um desses personagens da novela foi Fabrício, um varredor de rua, empregado da prefeitura, que foi identificado como um militante de esquerda, às vezes chamado de socialista, às vezes de comunista. Fabrício possuía um discurso de militante de esquerda, com seus respectivos clichês e estereótipos, e portava sempre a cor vermelha em suas vestes. Era também um líder sindical, pois dizia-se presidente do sindicato dos varredores de rua da cidade.

         Durante o desenrolar da estória, Fabrício sofre importantes transformações após apaixonar-se por Isoldinha, uma das filhas de Margarida Weber. Constrói-se então um dilema para o personagem, como se ele tivesse que optar entre seus ideais de esquerda e a sua paixão. A relação com Isoldinha faz com que Fabrício abandone a postura radical e seus ideais socialistas. Uma das co-autoras da novela, Ana Maria Moretzsohn, chegou a afirmar: "O Fabrício vai se despreender das idéias socialistas. Não queremos um Lula na história" (12).

         A citação é reveladora: havia um Lula na história! O personagem contribuiu assim para a construção de representações sobre um dos candidatos, vinculando-o diretamente a determinadas posturas: o radicalismo (em determinados momentos, até a luta armada); o discurso ultrapassado; a imagem de uma pessoa com liderança e vínculos com o povo, mas que reconhece não ter experiência administrativa.

         No que se refere às representações sobre "tipos ideais" de candidatos, o personagem Áureo Melo cumpriu um papel importante. Filho do vereador Numa, Áureo nunca havia se interessado por temas políticos até uma viagem à capital, onde fez um curso sobre política. Volta então à cidade totalmente transformado, assumindo um discurso e uma postura de candidato "preparado" para assumir o poder. Em uma conversa com o professor Praxedes, afirma ter estudado e ter conhecimentos sobre os problemas da cidade. Áureo assume também a luta contra os "poderosos de Tubiacanga", preparando o dossiê contra o prefeito que desencadeou o seu processo de impeachment. [Final página 69]

         Além desses dois personagens, o protagonista de "Fera Ferida", Raimundo Flamel, também teve um lugar de destaque na construção de certas "noções-tipo" sobre a política. Apesar de não ser político, Flamel encarna a figura do justiceiro, do bem em sua luta contra o mal. (13). Essa missão é explicitada em vários momentos pelo prórpio personagem. Após reunir provas contra dois vilões da estória, Salutiana e Cassy Jones, ele afirma: "agora que eu estou de posse desses documentos eu vou fazer com esses dois tudo o que os brasileiros gostariam de fazer com aqueles que manobram o dinheiro alheio de forma desonesta e ainda continuam impunes". Flamel apresenta-se assim como o justiceiro, o portador das esperanças de justiça de todo um povo. Em outros episódios, afirma: "é assim que as pessoas devem me ver: o salvador de pessoas de bem e o exterminador de canalhas"; "eu sou o porta-voz dessas pessoas que estão aqui"; "eu sou o vingador que vai fazer a justiça possível".

         O personagem personifica, portanto, a figura do justiceiro. É nele que estão depositadas as esperanças, não na classe política (14). É a partir desses pressupostos que Flamel decide o processo político da cidade, incluindo a eleição para prefeito. Flamel é quem articula uma chapa com Áureo como candidato a prefeito e Fabrício a vice-prefeito (15). Ao anunciar seu apoio a essa chapa, doa 100 mil dólares para a campanha. Nessa oportunidade, Áureo afirma que guardará uma parte desse dinheiro para campanhas futuras: "vou dar um jeito de depositar na Suiça ou no Uruguai que é mais perto". Assim, mesmo o político que está no lado da justiça e do bem manobra com as sobras de campanha, pois, nas novelas, a desqualificação da política não conhece exceções. É o candidato apoiado pelo justiceiro que triunfa nas eleições de Tubiacanga. Quanto ao vice, Fabrício, este já havia "se despreendido das idéias socialistas".

e) O início do clima do otimismo

         O desfecho de "Fera Ferida" representou o início nas novelas do "clima de otimismo" que começou a de desenvolver no país nesse período (julho de 1994), principalmente a partir da implantação da nova moeda, o Real. No último capítulo, a "mocinha" da estória, Linda Inês, após receber uma encomenda para a sua tecelagem, afirma: "Vai começar uma nova era agora em Tubiacanga. Chega de ambição, chega de delírio, chega dessa febre de ganhar dinheiro fácil. Dinheiro não cai do céu. A gente tem que cair na real e a gente tem que começar a trabalhar" (16).

         A fala da personagem constrói assim a idéia de que Tubiacanga estava [Final página 70] entrando em uma nova era, estabelecendo uma idéia otimista de futuro. Um aspecto complexo é a possibilidade de que os telespectadores tenham vinculado a frase "a gente tem que cair na real" com a nova moeda que estava entrando em circulação, o que geraria um clima de confiança no plano econômico. Apesar de não existirem dados que possam confirmar essa possível decodificação por parte das espectadores, existem indícios de que tal representação do plano econômico e do país estava "emergindo" e, como veremos a seguir, tornou-se hegemônica na novela posterior, "Pátria Minha" (17).

A NOVELA "PÁTRIA MINHA"

         A novela "Pátria Minha", de Gilberto Braga, substituiu "Fera Ferida" no horário das 20 horas. Analisaremos a seguir de forma sumária alguns aspectos das representações construídas na novela entre 18 de julho e 1 de outubro de 1994.

a) O clima de otimismo e confiança

         Um elemento central na novela foi a construção de um clima de otimismo e de confiança no futuro do país. Este clima foi ainda mais potencializado devido ao fato do primeiro capítulo da novela ter ido ao ar no dia seguinte da conquista do tetracampeonato mundial de futebol pela seleção brasileira. Logo no início da estória, a trajetória de dois personagens, o casal Pedro e Ester, materializa essa construção do otimismo. Vivendo nos Estados Unidos, o casal enfrenta um dilema: Pedro deseja voltar ao Brasil, acredita que as perspectivas são boas e que o país tem futuro; Ester se opõe ao retorno, alegando que o país está em crise e que não oferece condições para a mudança. O casal acaba retornando, mas a disputa entre os dois pontos de vista permanece. A experiência no Brasil fará com que Ester, apesar das dificuldades encontradas, recue paulatinamente no seu pessimismo e se junte ao clima de otimismo que o enredo constrói.

         O clima de otimismo não é construído, portanto, como um discurso monolítico, sem contradições. É exatamente a partir do enfrentamento do pessimismo que a hegemonia do otimismo se estabelece. Exemplo disso é o diálogo entre Pedro, Dirceu, Ester e Carmita, onde as duas últimas travam um intenso debate em torno do país e seu futuro. A cada crítica de Ester, Carmita responde com um contra argumento: quando se fala do tráfico de drogas no Brasil, se responde que ele só existe porque as drogas são consumidas pelo primeiro mundo; quando se menciona a destruição das florestas e dos índios, responde-se que as florestas já foram dizimadas e os índios mortos nos países do primeiro mundo etc. A cena termina com Carmita expulsando Ester de sua residência por não adimitir que "falem mal da minha pátria dentro da minha casa". É exatamente por se constituir a partir do enfrentamento do pessimismo e da desconfiança, tão estimulados por novelas anteriores e tão presentes no senso comum, que o discurso otimista assume uma eficácia especial. [Final página 71]

b) Questões sociais e solidariedade

         "Pátria Minha" recuperou a discussão das questões sociais que haviam entrado em cena com "Renascer" e praticamente desaparecido em "Fera Ferida". Gilberto Braga trouxe para a trama da novela, por exemplo, a campanha contra a fome. Hebert de Souza, o Betinho, coordenador da campanha, ressaltou a importância de "Pátria Minha" ter colocado a campanha como parte do enredo (18). A campanha e o tema da solidariedade ganharam espaço principalmente com o desmoronamento da favela da Figueirinha, quando os personagens constituíram um amplo movimento para ajudar os desabrigados. Um terreno é doado por Gustavo, filho do empresário e grande vilão da estória, Raul Pelegrini. Pressionado pelo pai, Gustavo invade o terreno para desalojar os favelados. A invasão é um dos momentos mais fortes da novela. Ao som da música "Haiti" de Caetano Veloso e Gilberto Gil, vários personagens tentam barrar os tratores de qualquer forma. A cena em que uma das protagonistas principais da novela, Alice, se coloca diante de uma fila de tratores lembra a cena do jovem chinês diante dos tanques em Pequim, durante o massacre dos estudantes. Não há qualquer som nesse momento, só a força dos gestos e expressões da jovem que luta em defesa das casas dos favelados. No tumulto, Gustavo Pelegrini, que liderava a invasão, e Ester, que participava da resistência, morrem em decorrência da colisão entre os veículos em que se encontravam.

ALGUMAS CONCLUSÕES

         Como vimos na introdução aos referenciais teóricos que orientam essa pesquisa, a hipótese central é a de que o candidato que melhor se adapta ao "Cenário de Representação da Política (CR-P)" tende a obter êxito nas eleições. Quais são, em linhas gerais, os elementos constitutivos do CR-P das eleições presidenciais de 1994 construídos nas e pelas novelas? Podemos destacar os seguintes elementos (19):

          a) a desqualificação da política e dos políticos;
          b) a desqualificação do Estado e do governo;
          c) a desqualificação dos ideais e lideranças de esquerda;
          d) a valorização do candidato preparado e com estudo;
          e) a ênfase no quadro de crise social;
          f) o clima de otimismo e confiança;
          e) a afirmação da necessidade de apoio à pequena empresa.

          Essas foram algumas das "noções-tipo" (Durkheim) ou representações (Weber e Lima) construídas nas e pelas novelas de junho de 1993 até o primeiro [Final página 72] turno das eleições presidenciais (3 de outubro de 1994). É no marco do cenário composto por essas representações que se desenvolveu o processo eleitoral, constituindo um fonte importante de "marcos de referência" que orientam a decisão do voto. Como se posicionaram os candidatos diante desse cenário? Qual o candidato que melhor se "adaptou" a ele? Para responder essas questões, será útil analisar os motivos alegados pelos eleitores para justificar suas opções. A Tabela 2 apresenta as razões do voto na eleição presidencial de 1994, segundo pesquisa do instituto DATAFOLHA realizada entre 20 e 22 de setembro de 1994 (20):

Tabela 2
Razões apresentadas pelos eleitores para justificar
suas intenções de voto na eleição presidencial de 1994 *


 

Porcentagem das intenções de voto de cada candidato


Categorias **

FHC

LULA

ENÉAS

QUÉRCIA

BRIZOLA

AMIM

Ele fez o Plano Real/dará continuidade ao plano

55

1

3

2

0

2

É competente/está mais preparado

7

3

6

4

4

6

Tem melhor plano de governo

7

9

10

15

6

15

Pode melhorar o País

6

13

6

4

7

3

Já foi operário/ defende os trabalhadores

0

26

1

1

3

1

Para experimentar o novo

1

9

13

0

1

3

É inteligente

3

0

17

2

1

2

Não confio nos outros

4

5

12

4

2

5

É o mais honesto

4

6

12

7

7

12

É o mais experiente

5

2

1

35

24

35

É de esquerda/ tem propostas progressistas

0

3

1

0

1

1

* Base: entrevistados que escolheram candidato na intenção de voto estimulada
** Não constam todas as categorias, apenas algumas das mais citadas.
Fonte: DATAFOLHA, "As Razões do Voto".

          Parece-me que as razões para explicar a ascensão da candidatura de Fernando Henrique Cardoso devem ser buscadas também no Cenário de Representação da Política construído a longo prazo na e pela televisão e, de modo especial, nas telenovelas. FHC é o candidato que melhor se adapta às representações das novelas. Um aspecto fundamental para a sua candidatura foi o clima de otimismo e de confiança que se constituiu a partir de diversos fatores - como a conquista do tetra e a entrada em circulação da nova moeda - mas que foi potencializado e reforçado de forma importante pelas novelas, especialmente "Pátria Minha". Como mostra a Tabela 2, o Plano Real é apresentado como principal motivo da decisão do voto dos eleitores de Fernando Henrique Cardoso (21). A construção de um clima de otimismo e esperança certa- [Final página 73] mente cumpriu um papel relevante na ampliação do impacto do plano na escolha do eleitorado. Além disso, FHC era o candidato que mais se adequava à figura do candidato preparado, como indica a segunda categoria de maior menção de seus eleitores (É competente/Está mais preparado).

          Por outro lado, a desqualificação das lideranças e ideais de esquerda colocou importantes obstáculos à candidatura do principal opositor de FHC, Luís Inácio Lula da Silva. Essa desqualificação é um elemento importante para explicar por que apenas 3% dos eleitores de Lula mencionaram como razão do voto o fato do candidato ser de esquerda ou ter idéias progressistas. Também aqui, como em outras eleições, a representação de toda a classe política como corrupta e desqualificada faz com que uma das únicas distinções possíveis entre os candidatos seja a competência (FHC) ou experiência (Quércia, Amim e Brizola), características que quase nunca foram associadas a Lula (3% e 2% respectivamente). Um dos elementos do CR-P que mais potencializava a candidatura de Lula, e que talvez contribua para explicar a sua liderança nas pesquisas até julho de 1994, é a ênfase no quadro de crise social do país, promovida principalmente pela novela "Renascer". Entretanto, a tematização quase que absoluta da campanha em torno do Plano Real, patrocinada pelos mídia e por diversas forças políticas, diminuiu a relevância da discussão em torno dos problemas sociais, um dos elementos centrais da proposta e do programa do PT.

          Além disso, a desqualificação da política favorece candidatos que se apresentam como outsiders, opondo-se à classe política tradicional. Os mídia construíram assim um terreno propício para uma maior expansão, ainda que limitada, da candidatura de Enéas. O candidato do PRONA se destaca pela sua "inteligência" (17%), mas a opção pelo "novo" (13%), a falta de confiança nos "outros" (12%) e sua "honestidade" (12%) são categorias que indicam que Enéas se beneficiou da generalização de qualidades negativas a toda a classe política.

          Finalmente, a análise das novelas que antecederam a eleição presidencial de 1994 indica que esse gênero deve ser entendido em toda a sua complexidade. Ultrapassando as concepções baseadas em teorias conspiracionistas ou que concebem as novelas como meros "instrumentos da ideologia dominante", torna-se necessário desenvolver pesquisas sobre o modo como a hegemonia de certas representações se estabelece nesse espaço da programação da TV. No presente estudo, foi possível constatar que no texto da novela estão inscritas contradições importantes, pois "discursos dominantes e de oposição se fazem presentes, contribuindo para a constituição, mudança ou reforço de valores e 'leituras da realidade' que são um elemento fundamental do processo político" (PORTO, 1994b). No caso das novelas analisadas, havia a presença de temas e personagens que contribuíram para a formação de "CR-Ps contra-hegemônicos" ou "CR-Ps alternativos", cuja identificação é um dos problemas teóricos mais relevantes e difíceis deste tipo de análise (LIMA, 1994b). No que se refere aos personagens, este foi o caso do Padre Lívio e da professora Lu, em "Renascer", e de Fabrício, em "Fera Ferida". Com relação aos temas, cabe ressaltar a questão da reforma agrária, dos meninos de rua e dos problemas sociais ("Renascer") e da campanha contra a fome ("Renascer" e "Pátria Minha"). Assim, um campo ainda aberto para estudo é o da identificação das formas "não-hegemônicas", que podem ser tanto elementos "emergentes" (provenientes de contra-hegemonias), como elementos [Final página 74] de oposição que são incorporados/cooptados pela construção hegemônica.

          O presente trabalho buscou ressaltar os limites à decisão do voto estabelecidos pelas novelas. Mas apesar de serem fundamentais para se entender as possibilidades do comportamento eleitoral, os mídia em geral, e as telenovelas em particular, não são o único fator a condicionar um processo tão complexo como as eleições presidenciais. Outros fatores e processos da vida social podem desempenhar um papel decisivo. Entretanto, os mídia se transformam cada vez mais em um elemento central da análise política, impondo mudanças à própria natureza da política. As telenovelas constituem assim um elemento importante para a avaliação dos limites e possibilidades do comportamento eleitoral e dificilmente se poderá compreender as eleições presidenciais de 1994 em sua plenitude sem considerar as representações sobre o "mundo da política" constituídas nesse espaço da programação televisiva.

NOTAS

# Versões anteriores desse trabalho foram apresentadas no XVIII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, 23 a 27 de novembro de 1994 e no I Encontro Nacional de Estudos sobre Comunicação e Política, Salvador/BA, 14 e 15 de dezembro de 1994. O texto é um resultado parcial do projeto de pesquisa que está sendo desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Mídia e Política com o apoio do CNPq e do Decanato de Pesquisa e Pós-Graduação da UnB. Agradeço aos membros do GT pela contribuição ao desenvolvimento deste trabalho, especialmente seu coordenador, professor Venício A. de Lima, e a Samuel Malheiros pelas observações críticas.

* Mauro P. Porto é professor da Universidade de Brasília e pesquisador do Grupo de Trabalho Mídia e Política.

(1) "O grande medo é uma vitória da videocracia", Jornal do Brasil, 27 de março de 1994.

(2) Ver também "Partidos vigiam tevê amparados por lei", Correio Braziliense, Caderno de TV, 24 de julho de 1994, p. 7.

(3) Com relação a esse último aspecto, é importante ressaltar que já foram feitos esforços no sentido de discutir de modo mais concreto as formas pelas quais uma hegemonia se estabelece, principalmente através de certas características dos programas de TV (Gitlin, 1994). Torna-se necessário, todavia, estabelecer formas de operacionalização que instrumentalizem pesquisas sobre o papel dos mídia na constituição, reforço e/ou modificação de uma hegemonia.

(4) Para uma descrição das características dessa transição, ver WOLF, 1992, pp. 123-156.

(5) No caso específico das telenovelas, os trabalhos reunidos na segunda parte do livro organizado por Anamaria Fadul (1993) são exemplos dessa afirmação da polissemia e do papel da recepção.

(6) O diálogo está parcialmente transcrito em "Fazendo a cabeça", Veja, 10 de novembro de 1993, pp. 138-139.

(7) O programa do PP foi ao ar no dia 22 de novembro de 1993.

(8) "Campanha contra a fome precisa de mais apoio", Correio Braziliense, 3 de janeiro de 1994, p. 8.

(9) "Fazendo ...", p. 139.

(10) "Boni impede paródia ao escândalo do Sambódromo", Correio Braziliense, Correio da TV, 27 de março de 1994, p. 7.

(11) ibidem.

(12) "Tubiacanga não ficará imune ao clima eleitoral", Correio Braziliense, Correio da TV, 10 de julho de 1994, p. 9.

(13) Jesús Martin-Barbero (1991) mostra como o "justiceiro" é um dos personagens tradicionais do melodrama que tem por função "desenredar la trama de maletendidos y desvelar la impostura haciendo posible que 'la verdad resplandezca'" (p. 130).

(14) Renato Janine Ribeiro (1994) afirma que "Fera Ferida" apresenta a perspectiva de uma solução moralista, uma possível saída para a sociedade fora da política. Segundo Ribeiro, "Esta nossa incapacidade de entender a política como o âmbito em que a sociedade adquire e alça a voz pode, ainda, custar-nos caro. É este o caldo de cultura para os regimes de força".

(15) Para Janine Ribeiro (1994), essa chapa representou a cooptação de Fabrício: "O próprio personagem que alegoriza Lula, o lixeiro Fabrício, acaba aceitando ser cooptado, em posição subalterna (a vice-prefeitura) pelo esquema dominante".

(16) Agradeço Afonso de Albuquerque por nos ter chamado a atenção para este episódio.

(17) Raymond Williams (1990) alerta para a necessidade de reconhecer a dinâmica das relações internas de qualquer processo cultural. Assim, ao identificar as características dominantes de uma hegemonia, temos também que reconhecer a existência de elementos "residuais" (formados no passado, mas ainda ativos no presente) e "emergente" (novos significados e valores que estão sendo continuadamente criados)(pp. 121-127).

(18) "Um horário para colocar no ar o TRE da miséria", Correio Braziliense, 31 de julho de 1994, p. 20.

(19) É importante ressaltar que o CR-P é um processo dinâmico construído não só pelas novelas, mas também por outros espaços da programação da televisão, como os telejornais. O projeto mais amplo no marco do qual se desenvolve a presente análise inclui o estudo do "Jornal Nacional", dos programas dos partidos, do Horário Eleitoral Gratuito, entre outros espaços da programação. A pesquisa sobre o papel da televisão na eleição de 1994, que tem nas novelas um elemento central, deve ser complementada por outros estudos.

(20) Agradeço a Gustavo Venturi, diretor do DATAFOLHA, pelos comentários feitos durante o XVIII Encontro Anual da ANPOCS e o posterior envio das informações do relatório "A decisão do Voto".

(21) Sobre o papel do Plano Real na decisão do voto em 1994, consultar MENDES e VENTURI, 1994.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



  • BACZKO,
    Bronislaw (1985), "Imaginação social", in Enciclopédia Einaudi, Vol. 5, Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 296-332.

    CHRISTMAS
    , Clifford G. e CAREY, James W. (1981), "The logic and aims of qualitative research", in Guido Stempel e Bruce Westley (eds.) Research Methods in Mass Communication, Prentice-Hall.

    CONDIT,
    Celeste Michelle (1994), "The rhetorical limits of polysemy", in H. Newcomb (ed), Television: The Critical View, New York: Oxford University Press, pp. 427-447.

    DURKHEIM
    , Émile (1993), "Sociedade como fonte do pensamento lógico", in José A. Rodrigues (org.), Durkheim: Sociologia, São Paulo: Atica, pp. 166-182.

    ELEIÇÕES 1994: LEI N. 8.713
    (1993), Brasília: Imprensa Nacional.

    FADUL,
    Anamaria (1993), ed., Ficção Seriada na TV: As Telenovelas Latinoamericanas, São Paulo: ECA-USP.

    GITLIN,
    Todd (1994), "Prime time ideology: the hegemonic process in television entertainment", in H. Newcomb (ed), Television: The Critical View, New York: Oxford University Press, pp. 516-536.

    GRAMSCI
    , Antonio (1989), Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

    HALL
    , Stuart (1980), "Encoding/decoding", in S. Hall et alli, Culture, Media, Language, London/Birmingham: Hutchinson/CCCS, pp. 128-138.

    ____________
    (1988), "New Ethnicities" in K. Mercer et alli, Black Film, British Cinema, London: ICA, n. 7, pp. 27-30.

    _____________ (1989), "Ideology and communication theory", in B. Dervin et alli, Rethinking Communication Paradigm Issues, Vol. 1, London: Sage.

    LANG
    , Kurt E. e LANG, Gladys E. (1993), "Los ‘mass-media’ y las elecciones", in M. de Moragas (ed), Sociologia de la Comunicación de Masas, Vol. III, Barcelona: GG Mass Media, pp. 66-94.

    LIMA
    , Venício A. de (1990), "Televisão e política: hipótese sobre a eleição presidencial de 1989", Comunicação & Política, Ano 9, n. 11, abril-junho, pp. 29-51.

    _______________
    (1994a), "Televisão e poder: a hipótese do cenário de representação da política; CR-P", Comunicação & Política, Nova Fase, Vol. 1, n. 1, agosto-novembro, pp. 5-22.

    ________________ (1994b), "CR-P: novos aspectos teóricos e implicações para a análise política", trabalho apresentado no I Encontro Nacional de Estudos Sobre Comunicação e Política, Salvador/BA, 14 a 16 de dezembro.

    MARTIN-BARBERO,
    Jesús (1991), De los Medios a las Mediaciones, México, DF: GG MassMedia.

    MATTELART
    , Michéle e MATTELART, Armand (1989), O Carnaval das Imagens, São Paulo: Brasiliense.

    MELO,
    Luciana e OLIVEIRA, Renata A. (1994), "A construção do CR-P na novela 'Pátria Minha': eleições 1994", trabalho apresentado no I Encontro Nacional de Estudos Sobre Comunicação e Política, Salvador/BA, 14 a 16 de dezembro.

    MENDES,
    Antonio Manuel Teixeira e VENTURI, Gustavo (1994), "Eleição presidencial: o Plano Real na sucessão de Itamar Franco", trabalho apresentado no XVIII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, 23 a 27 de novembro.

    MORLEY,
    David (1990), "The construction of every day life: political communication and domestic media", in D. Swanson e D. Nimmo (eds), New Directions in Political Communication, Newbury Park: Sage, pp. 123-146.

    NEWCOMB,
    Horace e HIRSCH, Paul M. (1994), "Television as a cultural forum", in H. Newcomb (ed), Television: the Critical View, New York: Oxford University Press, pp. 503-515.

    NIMMO,
    Dan e SWANSON, David L. (1990), "The field of political communication: beyond the voter persuation paradigm", in D. Swanson e D. Nimmo (eds), New Directions in Political Communication, Newbury Park: Sage, pp. 7-47.

    PORTO
    , Mauro P. (1993), "Meios de comunicação e hegemonia: o papel da televisão na eleição de 1992 para prefeito de São Paulo", Dissertação de Mestrado em Ciência Política, Universidade de Brasília.

    ________________
    ( 1994a) "As eleições municipais em São Paulo" in Heloiza Matos (org.), Mídia, Eleições e Democracia, São Paulo: Scritta, pp. 133-157.

    ________________
    (1994b), "Telenovelas e imaginário político no Brasil", Cultura Vozes, Vol. 88, n. 6, novembro-dezembro.

    REIS
    , Elisa P. (1989), "Reflexões sobre o Homo Sociologicus", Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 11, Vol. 4, outubro, pp. 23-33.

    RIBEIRO,
    Renato Janine (1994), "Sociedade sem uma política é utopia", Folha de São Paulo, Caderno Mais, 21 de agosto, p. 6-12.

    RUBIM
    , Antonio Albino C. (1989), "Comunicação, espaço público e eleições presidenciais", Comunicação & Política, Vol. 9, (2-3-4), pp. 7-21.

    SARTORI
    , Giovani (1992), "Videopoder", in idem, Elementos de Teoria Política, Madrid: Alianza Editorial, pp. 305-316.

    SHOLLE,
    David (1990), "Resistance: pinning down a wandering concept in cultural studies discourse", Journal of Urban and Cultural Studies, Vol. 1, n. 1, pp. 87-105.

    SKIDMORE
    , Thomas (1993), ed., Television, Politics and the Transition to Democracy in Latin America, Baltimore/London: The John Hopkins University Press.

    WEBER
    , Maria Helena (1990), "Pedagogias de despolitização e desqualificação da política brasileira: as telenovelas da Globo e nas eleições presidenciais de 1989", Comunicação & Política, Ano 9, n. 11, abril-junho, pp. 67-83.

    WEBER
    , Max (1991), Economia e Sociedade, Vol. I, Brasília: EdUnB.

    WEFFORT
    , Francisco (1992), Qual Democracia?, São Paulo: Companhia das Letras.

    WILLIAMS,
    Raymond (1990), Marxism and Literature, Oxford/New York: Oxford University Press.

    WOLF
    , Mauro (1992), Teorias da Comunicação, Lisboa: Presença.

    Retornar à Página de Textos